Ciro foge do lugar comum em todos os sentidos. Em primeiro lugar, é um sertanejo de origem, de uma família de camponeses e artesãos, mas chegou às artes plásticas por duas vias diferentes, ambas de alguma forma ligadas ao mercado capitalista, e não às feiras livres de nossa cidade natal, Uiraúna, no interior mais ermo da Paraíba. Seu talento inato para o desenho não o levou, de início, à arte do povo, mas ao comércio propriamente dito. Migrou do sertão, foi morar num bairro distante da Zona Leste de São Paulo, Itaquera, o mesmo que abriga hoje o estádio do Corinthians, usado para a abertura da Copa do Mundo do Brasil em 2014. Hospedava-se na pensão de um conterrâneo e nela conheceu, apaixonou-se, noivou e se casou com Ritinha, com quem vive e tem dois filhos, Bruno e Milena. O prenome do filho evoca o sobrenome do mártir do livre pensar, o monge Giordano Bruno, queimado em praça pública no Campo dei Fiori na eterna capital do mundo, Roma. Milena herdou o nome das leituras do pai sobre a noiva sempre amada de Franz Kafka, não um artista plástico, mas o maior romancista da literatura ocidental no século XX. Não um nome comum aos Fernandes da Quixaba, mas um belo nome de mulher tirado de um clássico da literatura epistolar da cultura judaico-alemã de Praga, capital da República Checa e centro da rebelião contra a ocupação imperialista soviética nos emblemáticos anos 60 do “é proibido proibir”.
Ciro começou nas artes plásticas pintando bois para açougues e cartazes de lojas do comércio popular da periferia onde conheceu Ritinha. Por coincidência, as mesmas origens do catalão Francesc Petit, imigrante que se juntou a outro barcelonês, José Zaragoza, e a um descendente de fenícios, Roberto Duailibi, para formarem em São Paulo uma das agências de publicidade reconhecidas como das mais criativas do Ocidente em todos os tempos. E Ciro também passou pela publicidade. Quando o conheci, ele era diretor de arte de uma pequena agência com sede num modesto escritório no centro do Rio. A prolífica família Fernandes, oriunda da mesma Uiraúna, lá de onde vim, morava a poucos metros da Vila da Penha, onde foi criado um dos deuses do futebol carioca, o baixinho Romário. Mas num determinado momento Ciro sentiu pulsar a alma do artista matuto ao longo das veias das mãos, que até então usava para fazer caprichados past ups de arte final de anúncios, um passo acima na escala social do desenhista de letras e algarismos das lojas de Itaquera. Em sua vida de peregrino pela cidade grande, egresso do ermo do Rio do Peixe, Ciro cruzou com outro paraibano, Zé Altino, artista plástico (colega de Antônio Dias, Raul Córdula, Waldemar Solha, Flávio Tavares, Miguel dos Anjos, Chico Pereira), com prestígio entre os atores (Ednaldo do Egito, Marcélia Cartaxo, Zezita Matos, Sávio Rolim), maestros (Marcus Vinicius, Kaplan, Siqueira), poetas (Marcos Tavares, Sérgio de Castro Pinto, Jomar Moraes), humoristas (Anco Márcio, Chaolin, Jessiere Quirino), cantores e compositores (Zé Ramalho, Kátia de França, Chico César, Jaguaribe Carne), críticos (Virginius da Gama e Melo, Barreto Neto, Jurandy Moura), cineastas (Carlos Aranha, Linduarte Noronha, Willis Leal, Ipojuca Pontes, José Marinho, Vladimir Carvalho, Walter Carvalho, Machado Bitencourt).
A relação incompleta dos grandes talentos daquela geração servirá apenas para aduzir que Zé Altino não era propriamente um artista conectado em linha direta com folclore e artesanato, mas muito mais com o mercado, do qual Ciro fugiu quando encontrou nele o professor adequado para ensinar a técnica artística que podia ter aprendido na casa materna com o tio Chico de Marocas, artesão de talento e gosto. Foi o encontro do sertanejo na diáspora com o artista múltiplo com quem poderia dialogar entre irmãos de opa, embora de origens e formação diferentes. Zé Altino encontrou em Ciro de Uiraúna o discípulo talhado para a xilogravura, a modalidade dos gravadores sertanejos que encontravam na madeira material para produzir capas de folhetos de cordel, vendidos em barracas. E lá foi Ciro talhar nas formas de pau santos e putas, cangaceiros e soldados, políticos e capiaus. Suas memórias do sertão reproduziram talhas geniais de Dom Quixote e Dulcineia, Lampião e Maria Bonita, quengos e boçais.
Ciro de Socorro de Abdoral não fez muitas vezes nem de forma definitiva uma viagem de volta ao sertão de origem, mas o sertão do Rio do Peixe não está presente nele apenas no nome do vilarejo que virou cidade e ele adotou como pseudônimo artístico. Uiraúna do fogueteiro Vitô, do cozinheiro Verton, da assistente social Erundina, do doido Labrada, da puta Escurinha, do cônego Anacleto, do saxofonista Zé de Milta, do cego Dedé, do bispo dom Luiz Fernandes, do monsenhor Manuel Vieira, do artista de rádio Barros de Alencar, do cirurgião do Senado que operou Tancredo, dr. Pinheiro da Rocha, e deste escriba que lhes toma o tempo desta leitura, está entranhada na sua memória afetiva como a tinta que imprime no papel as ranhuras feitas com cinzel na forma de suas xilogravuras. Nas bandeirolas juninas, nas cenas de cantorias de viola e rebeca, nos touros bravos das vaquejadas, nos amarelos que engabelam valentões o sertão se reproduz na obra dele como marcas vivas de suas raízes de mandioca e da floração dos cactos do semiárido. Ciro é o calor e a fresca, a amargura e a doçura, a soleira e o luar do ambiente que se transplanta para as margens da Baía da Guanabara sempre que de suas mãos brota a própria arte bela, singular e afoita.
José Nêumanne
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no encarte especial Ciro Fernandes da revista Leia Felc de janeiro de 2018)
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