Na política, golpes baixos valem mais?

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A cidade elegerá o prefeito, que não tem a obrigação de ser pai de família

Diziam os antigos que a política é a arte de engolir sapos. Não deve ser fácil fazê-lo, mas na certa mais habilidade se exigirá de quem cospe para cima e não quer ser atingido pela própria cusparada. O deputado Eduardo Paes, ex-favorito à prefeitura da segunda maior cidade do País, a antigamente tida como maravilhosa São Sebastião do Rio de Janeiro, é a mais recente vítima desta lei inexorável da Física, dita da gravidade, que Isaac Newton descreveu, segundo a lenda, após a queda de uma maçã sobre sua cabeça. Ele era secretário-geral do PSDB, principal partido da oposição, quando os meios de comunicação se ocupavam quase exclusivamente do escândalo do “mensalão”. E, inflamado pelo calor dos holofotes, apressou-se a convocar o amado filho de Sua Majestade, o nunca antes tão popular presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a depor.
Mas, como deviam também saber os mais jovens, pois os provectos o afirmam faz tempo, o mundo dá muitas voltas e a noite que prenuncia o dia – e vice-versa – também aconselha a prudência como única atitude para a qual há a garantia de que represálias não virão. À época da turbulência provocada pela denúncia do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), o tucanato, em cujo ninho se aninhava o rapaz, se alvoroçou com a possibilidade de sangrar o peru às vésperas da eleição, sem imaginar que para isso teria de desinfetar as próprias vísceras. Tido como derrotado antes da hora, o fenômeno de popularidade Lula da Silva deu a volta por cima e enterrou os sonhos tucanos de voltar a galgar as rampas palacianas, como nos velhos tempos. Treinado nas manhas e mumunhas da politicagem nacional e conhecedor da inabilidade tucana para ler os desígnios do destino, Paes pulou de galho e se abrigou à sombra da frondosa árvore peemedebista, sob as bênçãos do governador fluminense, Sérgio Cabral, que fora ungido pela graça de El Rey todo poderoso. Dali partiu para disputar a prefeitura da ex-Cidade Maravilhosa e, para gozar os benefícios da fama do Supremo, mandou-lhe uma carta, extensiva à digna consorte, pedindo perdão pelo que antes dissera de seu pimpolho.
Nada houve, desde as denúncias açodadas de Sua Excelência, que o levasse a voltar atrás, da forma humilhada como o fez, nas acusações a Sua Alteza. O que o fez abjurar o que antes afirmara com tanta convicção não foi a presunção da inocência do príncipe nem o reconhecimento da própria precipitação, mas o peso a que submeteu sua coluna o projeto de se alçar a tão alto cargo, carga, pelo visto, superior à da própria palavra – e de sua biografia. Na disputa apertada que se prenuncia pelo voto carioca neste turno decisivo, importa é conseguir a bênção do Sumo Pontífice. A coerência, como dizia o velho Chatô, patrono da malandragem nacional, é a virtude dos imbecis. É de duvidar que, mesmo que ele arregaçasse as mangas da camisa e partisse para o corpo-a-corpo da campanha, o que não fará, a popularidade do Maior Magistrado, sozinha, vencesse Fernando Gabeira (PV). Mas, por mais humilhante que seja, a retratação pesa menos sobre as vértebras do candidato oficial que o risco de deixar escaparem alguns votos dos receptadores da Bolsa-Família. Seria a política um tipo de vale-tudo em que golpes baixos valem mais pontos?
Apostando nessa lei não escrita da práxis eleitoral, os marqueteiros de Marta Suplicy (PT) decidiram investir no preconceito como arma à mão para tomar do adversário na campanha paulistana, o prefeito Gilberto Kassab (DEM), a surpreendente dianteira de 17 pontos detectada pelas pesquisas na partida para o segundo turno. Os marqueteiros de Marta e a própria candidata comportam-se no caso como se os eleitores paulistanos fossem portadores da mesma miopia que os faz atuar achando estarem na posse do monopólio da virtude, certos de que a incapacidade de enxergar o próprio rabo de palha provocará cegueira generalizada na população. Na televisão, como sexóloga, e na Câmara, como deputada, ela vislumbrou na guerra ao preconceito um nicho para levá-la às alturas. E lá chegou: foi prefeita de São Paulo, como antes havia sido Luiza Erundina, e ministra do Turismo, estando seu PT no poder na República.
Cego às evidências de que não pode ser vítima de preconceito uma mulher que teve a honra de ser escolhida para administrar o mais populoso e rico município do País, seu ex-chefe e agora paraninfo das ambições dela na disputa municipal, Luiz Inácio Lula da Silva, tentou jogar a culpa da derrota da preferida no primeiro turno nas costas da cidadania: ela teria tido menos votos que o conservador, ex-malufista e ex-secretário de Pitta não pelos próprios deméritos nem pelos méritos do adversário, mas pelos preconceitos do eleitor. E, como palavra de rei não volta atrás nem pode ser banalizada, a candidata e seus marqueteiros resolveram adotar como estratégia de campanha a exploração daquele que, conforme Lula, teria sido o motivo capital da inesperada derrota em 5 de outubro: o conservadorismo preconceituoso do paulistano. Foi por acreditar nisso que a ex-prefeita resolveu lembrar ao eleitor, de maneira bem pouco sutil, que o adversário não é casado nem tem filhos. Os autores dessa proeza de torpeza sabem que estado civil e capacidade de reprodução não são exigidos de ninguém para disputar nem assumir a Prefeitura. Eles imaginam que essa insinuação pode levar o eleitor a rejeitar o adversário pelo mesmo motivo que pensam que a rejeita: seu comportamento atípico. E as tentativas posteriores de consertar o erro em nada o modificam.
Apesar de se comportar como se já houvera sido, a ex-prefeita ainda não teve derrotada sua pretensão de voltar ao posto. Mas sua desastrada entrada na reta final do pleito acrescentou um obstáculo a mais a ser superado: ela só o vencerá se o paulistano não perceber que mais insultado que Kassab foi o eleitor, tido por ela na conta de preconceituoso e intrometido.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2008, p. A2

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José Nêumanne Pinto

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