Mário Chamie

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Bastidores Líderes
No caso do último livro publicado em vida por Chamie, a coisa ainda é mais complicada. Iluminado pelos holofotes da glória literária desde 1962, no advento da “instauração práxis”, em meio a uma arenga cultural com consequências pessoais contra o trio concretista Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, o autor passou da vida real para a ficção, do raconte-à-clef (conto de chave) para a piada sarcástica sem a menor cerimônia. No último dos 78 anos de sua vida, avisado da aproximação da Indesejada das Gentes, o caipira de Cajobi (SP), que se disse “sírio e sério” no livro de poemas Caravana Contrária (por ele gravado para o CPC da Umes), herdeiro da tradição levantina dos fenícios, aprimorou seus perfumes, mas também refinou seus venenos florentinos contra os inimigos que o atormentavam nas cátedras universitárias e nas Academias de Letras, inclusive a Paulista, da qual era membro. Preparou-se para o último suspiro mofando dos outros.

Para fazer jus ao título genial da coletânea, descreveu anedotas impagáveis da vidinha literária, caso do almoço dado por Ciccillo Matarazzo, idealizador e realizador da 1.ª Bienal Latino-Americana de Literatura, a Jorge Luis Borges, nela homenageado. No meio da refeição, contou o conviva, Ciccillo marcou uma audiência do contista argentino com o militar de plantão no Planalto, general Emílio Médici. E quase caiu da cadeira quando ouviu o gênio de História Universal da Infâmia declinar, com sua voz débil de quase gago: “Ah! sim! sim! Que lástima! Que lástima! Amanhã é o dia do aniversário de minha madrecita.” Depois de imprecar contra aquele caso de Édipo portenho, só restou ao magnata e mecenas Francisco Matarazzo Sobrinho resignar-se e ordenar ao mordomo: “Per Bacco! Per Dio, Antonio, me dá mais arroz!

 

 

Borges não entra por acaso no livro nem nestas linhas. Quem acompanhou a militância de Chamie na vanguarda poética certamente achou que ele seguiria pela trilha aberta pelo dublinense James Joyce na pesquisa apurada e acurada da palavra como matéria-prima. Com o amadurecimento, contudo, o autor de A Quinta Parede se foi distanciando do laboratório de Finnegans Wake e se aproximando de seu oposto: o buraco de Aleph, pelo qual o argentino via o universo. Todo episódio pequeno ganha sabor, graça e vida na palavra fora da gaiola desse borgiano do interior de São Paulo. A picuinha contra o trio Noigandres se manifesta na piada do roceiro que se recusa a decorar um poema de Haroldo de Campos, no qual se repetem e se fundem as palavras temor e morte, para sair da cela a que estava recolhido, sob a guarda do jovem delegado de Severínia (nome com vezo cabralino). Ou no fato revelado da antipatia mútua entre o poeta Ungaretti e o museólogo Bardi por conta da ojeriza de um pelo passado fascista do outro. E vice-versa.

O ensaísta atrevido que desafiou medíocres e áulicos manifestou-se em pílulas no livro em que a palavra voa com asas da liberdade de contar por contar. A obra não estará entre as mais vendidas. Dificilmente sua prosa, que mistura saber com sabor, levará o autor ao panteão das academias. Mas cada joia nela contida resgatará a necessidade da literatura e a dignidade de quem a produzir ou ler.

 

Registro ainda o magnífico texto do imortal Eduardo portella, lido na sessão da Academia Brasileira de Letras de quinta-feira passada:

Mário Chamie (1933-2011)

Eduardo Portella
Venho registrar, com indisfarçável dificuldade, a perda inesperada do poeta e crítico Mário Chamie. Ambos superiormente dotados.
Em Mário Chamie, ao contrário dos servidores servis do previsível, o poeta é aquele que fala o que ainda não foi dito, que escreve o que nunca foi escrito. Não copia, nem imita, nem dissolve. Inventa simplesmente, no conluio insólito e sábio da palavra com a imaginação. Trabalha no outro lado dos que se comprazem com a distribuição abusiva de impressões desconectadas, de bravatas verborrágicas, carentes de consistência crítica, desamparadas teoricamente.
Mário Chamie é o intelectual de lavra laboriosa, enérgico e certeiro na pontaria. Nem vacilante, nem trêmulo, e muito menos morno. Relendo-o não consigo conter a vontade de enfatizar: é preciso varrer da face da terra a crítica morna, parasitária, repetitiva, fechada no pequeno mundo das trocas de obséquios. O ensaísta Mário Chamie seguia a risca a estratégia do desbravador. Íntegro, preciso e iluminado. Generoso mesmo. Em hora alguma tolerante com a intolerância. Era membro destacado da família Tempo Brasileiro.
O poeta jamais é um mero reescritor. O meu saudoso amigo, o também poeta Félix de Athayde, gostava de referir-se pejorativamente ao que chamava de reescritor. Aquele que repete o que já fora verbalizado anteriormente. Tinha razão.
Por sua vez o crítico ─ e Mário Chamie é um exemplo ─ é aquele que vê antes, sempre criteriosamente, tecnicamente sustentado, existencialmente plantado, aquele que, pelo menos por alguns instantes, consegue ser co-autor, sem traumas nem ressentimentos.
Instauração foi a palavra de ordem do movimento vanguardista Práxis, por ele criado em momento oportuno da nossa contemporaneidade literária, e que contou com a participação qualificada de José Guilherme Merquior, entre muitos outros.
Mário Chamie foi igualmente o militante ativo e altivo da frente comum que se opôs à sacralização do poema e à mistificação da palavra. O que significa predicar pela poética vertical, nem balofa, nem esquálida, nem inflacionaria, nem tão somente desidratada. Nada disso passou desapercebido à argúcia crítica do poeta maior Cassiano Ricardo.
Muito apreendemos com a sua leitura penetrante: dos homens, das coisas, dos gestos, dos sinais esquivos, do silêncio, da desolação, da letra insubmissa, da esperança. Desde os dias matinais, antes até da eclosão do Lavra-lavra até os Caminhos da Carta, passado, presente e talvez futuro, de Pero Vaz de Caminha, ou mais recentemente às desconcertantes Neonarrativas.
Mário Chamie, pelo que fez, pela literatura, pela cultura, pelo homem brasileiros, pertence à linhagem dos que perderam o direito à morte. Resta-nos celebrar a vida com ele.

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José Nêumanne Pinto

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