Mário Chamie. Um testamento de plena liberdade

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O título do livro – Neonarrativas Breves e Longas – já diz tudo. A um ano dos 50 do lançamento deLavra Lavra, seu quarto livro, com o qual “instaurou”, verbo que usava para tratar do assunto, a poesia práxis, e dos 30 de sua maior obra como administrador público de cultura, o Centro Cultural Vergueiro, Mário Chamie deixou de publicar poemas, que continuava escrevendo, para entregar-se à prosa. Que prosa? Em seus dois últimos lançamentos literários – o anterior foi Pauliceia Dilacerada –, ele abandonou a condição extremada de poeta para se tornar uma espécie de domador e encantador de palavras, pássaros que deixou de engaiolar em versos ou em quaisquer outros gêneros – ensaios, romances, novelas, contos, seja lá o que forem. No ano passado, os críticos e jurados de concursos literários se viram em palpos de aranha para definir Pauliceia. Seria narrativa biográfica do inferno astral vivido por outro poeta Mário, o de Andrade, depois de demitido do Departamento Cultural da Prefeitura de São Paulo, ou ensaio sobre os efeitos literários do impacto negativo produzido pela demissão na produção do autor de Amar, Verbo Intransitivo? Em última instância, poderia até ser uma novela ou um romance breve com tintas historiográficas a respeito do célebre homônimo.

No caso do último livro publicado em vida por Chamie, a coisa ainda é mais complicada. Iluminado pelos holofotes da glória literária desde 1962, no advento da “instauração práxis”, em meio a uma arenga cultural com consequências pessoais contra o trio concretista Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, o autor passou da vida real para a ficção, do raconte-à-clef (conto de chave) para a piada sarcástica sem a menor cerimônia. No último dos 78 anos de sua vida, avisado da aproximação da Indesejada das Gentes, o caipira de Cajobi (SP), que se disse “sírio e sério” no livro de poemas Caravana Contrária (por ele gravado para o CPC da Umes), herdeiro da tradição levantina dos fenícios, aprimorou seus perfumes, mas também refinou seus venenos florentinos contra os inimigos que o atormentavam nas cátedras universitárias e nas Academias de Letras, inclusive a Paulista, da qual era membro. Preparou-se para o último suspiro mofando dos outros.

Para fazer jus ao título genial da coletânea, descreveu anedotas impagáveis da vidinha literária, caso do almoço dado por Ciccillo Matarazzo, idealizador e realizador da 1.ª Bienal Latino-Americana de Literatura, a Jorge Luis Borges, nela homenageado. No meio da refeição, contou o conviva, Ciccillo marcou uma audiência do contista argentino com o militar de plantão no Planalto, general Emílio Médici. E quase caiu da cadeira quando ouviu o gênio de História Universal da Infâmia declinar, com sua voz débil de quase gago: “Ah! sim! sim! Que lástima! Que lástima! Amanhã é o dia do aniversário de minha madrecita.” Depois de imprecar contra aquele caso de Édipo portenho, só restou ao magnata e mecenas Francisco Matarazzo Sobrinho resignar-se e ordenar ao mordomo: “Per Bacco! Per Dio, Antonio, me dá mais arroz!

 

Borges não entra por acaso no livro nem nestas linhas. Quem acompanhou a militância de Chamie na vanguarda poética certamente achou que ele seguiria pela trilha aberta pelo dublinense James Joyce na pesquisa apurada e acurada da palavra como matéria-prima. Com o amadurecimento, contudo, o autor de A Quinta Parede se foi distanciando do laboratório de Finnegans Wake e se aproximando de seu oposto: o buraco de Aleph, pelo qual o argentino via o universo. Todo episódio pequeno ganha sabor, graça e vida na palavra fora da gaiola desse borgiano do interior de São Paulo. A picuinha contra o trio Noigandres se manifesta na piada do roceiro que se recusa a decorar um poema de Haroldo de Campos, no qual se repetem e se fundem as palavras temor e morte, para sair da cela a que estava recolhido, sob a guarda do jovem delegado de Severínia (nome com vezo cabralino). Ou no fato revelado da antipatia mútua entre o poeta Ungaretti e o museólogo Bardi por conta da ojeriza de um pelo passado fascista do outro. E vice-versa.

O ensaísta atrevido que desafiou medíocres e áulicos manifestou-se em pílulas no livro em que a palavra voa com asas da liberdade de contar por contar. A obra não estará entre as mais vendidas. Dificilmente sua prosa, que mistura saber com sabor, levará o autor ao panteão das academias. Mas cada joia nela contida resgatará a necessidade da literatura e a dignidade de quem a produzir ou ler.

 

Registro ainda o magnífico texto do imortal Eduardo portella, lido na sessão da Academia Brasileira de Letras de quinta-feira passada:

Mário Chamie (1933-2011)

   Eduardo Portella

Venho registrar, com indisfarçável dificuldade, a perda inesperada do poeta e crítico Mário Chamie. Ambos superiormente dotados.
Em Mário Chamie, ao contrário dos servidores servis do previsível, o poeta é aquele que fala o que ainda não foi dito, que escreve o que nunca foi escrito. Não copia, nem imita, nem dissolve. Inventa simplesmente, no conluio insólito e sábio da palavra com a imaginação. Trabalha no outro lado dos que se comprazem com a distribuição abusiva de impressões desconectadas, de bravatas verborrágicas, carentes de consistência crítica, desamparadas teoricamente.
Mário Chamie é o intelectual de lavra laboriosa, enérgico e certeiro na pontaria. Nem vacilante, nem trêmulo, e muito menos morno. Relendo-o não consigo conter a vontade de enfatizar: é preciso varrer da face da terra a crítica morna, parasitária, repetitiva, fechada no pequeno mundo das trocas de obséquios. O ensaísta Mário Chamie seguia a risca a estratégia do desbravador. Íntegro, preciso e iluminado. Generoso mesmo. Em hora alguma tolerante com a intolerância. Era membro destacado da família Tempo Brasileiro.

            O poeta jamais é um mero reescritor. O meu saudoso amigo, o também poeta Félix de Athayde, gostava de referir-se pejorativamente ao que chamava de reescritor. Aquele que repete o que já fora verbalizado anteriormente. Tinha razão.
Por sua vez o crítico ─ e Mário Chamie é um exemplo ─ é aquele que vê antes, sempre criteriosamente, tecnicamente sustentado, existencialmente plantado, aquele que, pelo menos por alguns instantes, consegue ser co-autor, sem traumas nem ressentimentos.
        Instauração foi a palavra de ordem do movimento vanguardista Práxis, por ele criado em momento oportuno da nossa contemporaneidade literária, e que contou com a participação qualificada de José Guilherme Merquior, entre muitos outros.
Mário Chamie foi igualmente o militante ativo e altivo da frente comum que se opôs à sacralização do poema e à mistificação da palavra. O que significa predicar pela poética vertical, nem balofa, nem esquálida, nem inflacionaria, nem tão somente desidratada. Nada disso passou desapercebido à argúcia crítica do poeta maior Cassiano Ricardo.
Muito apreendemos com a sua leitura penetrante: dos homens, das coisas, dos gestos, dos sinais esquivos, do silêncio, da desolação, da letra insubmissa, da esperança. Desde os dias matinais, antes até da eclosão do Lavra-lavra até os Caminhos da Carta, passado, presente e talvez futuro, de Pero Vaz de Caminha, ou mais recentemente às desconcertantes Neonarrativas.
Mário Chamie, pelo que fez, pela literatura, pela cultura, pelo homem brasileiros, pertence à linhagem dos que perderam o direito à morte. Resta-nos celebrar a vida com ele.

© O Estado de S. Paulo, sábado, 9 de julho de 2011, Sabático, S05

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José Nêumanne Pinto

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