Mário Chamie é poeta. Da Instauração Práxis, em que surgiu aclamado por intelectuais como Gilberto Freyre, até hoje, quando é estrela de primeira grandeza na literatura nacional, seu nome se destaca na produção poética. Mas ele é também um ensaísta respeitado, tendo publicado textos profundos e precisos sobre temas literários e culturais. Um de seus ensaios mais venerados é sobre Macunaíma, saga do herói sem nenhum caráter da lavra de outro Mário, o de Andrade.
Sua obra mais recente, Paulicéia Dilacerada, resultado de pesquisas e estudos iconográficos, epistolares e comportamentais do autor de Paulicéia Desvairada, tem como ponto central o xará e grande antecessor, mas não pode ser rotulada como pertencente a algum gênero literário. Tem que ver com poesia, pois reproduz alguns poemas importantes do gigante do modernismo e outros do próprio autor, que no livro assume a identidade de Máior Hacime, anagramas de seus nome e sobrenome. Mas é, acima de tudo, prosa. Nâo propriamente de ficção, pois o texto, elegante e ágil, com esmeros de ourives próprios do autor, é escrito na primeira pessoa como se o tivesse sido pelo outro Mário, num espelhamento e concomitância de vozes ou falas de ambos.
Trata-se também de um ensaio, mas elaborado de forma inusitada, pois, atribuído ao pretenso autor, reflete conceitos e idiossincrasias do escritor oculto. Máior (não no sentido de mais grande, mas no de mais experiente, como no latim e no castelhano) Hacime (a ser pronunciado com o agá aspirado, com o sotaque dos árabes, dos quais o autor descende, mas sem disfarçar a condição de topo do pódio que o anagrama trai) faz de conta que é o modernista, mas sem deixar de ser o poeta de agora.
Só por isso, o mais recente lançamento do poeta de Cajobi, tomando emprestado a dor, o perfil e os conceitos do colega nascido na Rua Aurora, entra com peso e estardalhaço na anêmica produção literária nacional de nossos dias, mais empenhada em mumificar os vivos que em extrair dos mortos geniais a seiva criadora deles.
Chamie (ou melhor, Hacime) encontrou no xará de Andrade idêntica condição múltipla: poeta, ensaísta, especialista em comunicação de massas e professor, o autor de hoje reproduz o inventor e pensador de ontem – ele mesmo poeta, romancista, folclorista, formulador de políticas culturais, animador e, pasme, um grande urbanista.
A prosa de Chamie não é ficção. Pois, afinal, não há um só pensamento expresso em suas frases, curtas e pontiagudas como punhais envenenados, que não seja da lavra do fundador do Departamento de Cultura de São Paulo e que deu o nome à Biblioteca Central, que fica ali na Rua Xavier de Toledo. Nas cartas a amigos, mais do que em qualquer outra fonte, o autor contemporâneo encontrou as raízes das mágoas e contrariedades de seu tema. Demitido por burocratas medíocres que substituíram seu protetor Fábio Prado na Prefeitura de São Paulo, o primeiro Mário destila sua amargura e seu rancor contra os principais responsáveis por seu afastamento do Departamento de Cultura e, depois, pelo arquivamento de sua política cultural, que se pretendia também a matriz de um plano urbanístico para São Paulo, na cadência rápida e certeira que o segundo Mário deu ao texto do livro. São eles: Prestes Maia, Abraão Ribeiro e Faria Lima.
Ou seja, além de incinerar o lixo literário acomodado de nossos dias, produzindo uma obra literária além e acima dos gêneros, o autor desse libelo genial traz a lume uma revelação: Mário de Andrade foi urbanista.
Da leitura de Paulicéia Dilacerada, escrito na ortografia anterior aos remendos da atual, emerge a constatação de que o gênio fundador do modernismo na literatura brasileira também foi capaz de prever a degeneração urbanística da cidade onde nasceu e foi sepultado. Chamie encontrou nas diatribes do xará de antanho contra a indigência burocrática que o afastou da coordenação do movimento cultural paulistano argumentos sólidos o suficiente para concluir que os destruidores de seus sonhos e planos também demoliram a cidade que ele imaginava ver crescer sobre bases culturalmente orgânicas e civilizadas. Um crescimento não movido por uma tacanha mentalidade provinciana, de feição quatrocentona, mas por força de nossos valores culturais sincréticos que dão vida à grande rapsódia de Macunaíma.
Mário de Andrade morreu cedo, assassinado pela estreiteza obreirista de engenheiros que soterraram sua cidade sob aço, cal, asfalto e cimento de viadutos e avenidas, hoje glorificados como sábios gestores de uma megalópole que não pode parar. O caos de 8 de setembro é o supremo feito desses “tocadores de obras” imitados por sucedâneos contemporâneos (como Paulo Maluf). O xará Chamie reuniu erudição, coragem e talento formal para ressuscitar o cadáver enterrado na Consolação, compartilhando com o leitor seu lamento e sua indignação pela degenerescência do burgo que vendeu sua alma acolhedora ao diabo do automóvel, que mora nos entulhos de uma megalópole insana.
Mário Chamie
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