Mão estendida para saudar ou para beijar

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Urge Dilma não abrir um fosso profundo entre boas palavras e ações não tão positivas
As primícias de Dilma Rousseff na Presidência provocaram neste Quase-Velhinho de Uiraúna esperanças próprias da Velhinha de Taubaté, mas também frustrações. Antes, a boa notícia: seguindo roteiro traçado em casos clássicos, como o de Eurico Dutra, em 1946, e os mais recentes de Tancredo Neves ao inaugurar a Nova República e Itamar Franco ao substituir Collor, ela prometeu um governo de “união nacional”. E estendeu a mão aberta para a oposição, dizendo-se “presidenta” (céus, teremos de conviver com esse barbarismo por, pelo menos, quatro anos!) de todos os brasileiros, um truísmo que não quer dizer necessariamente inclusão, mas, pelo menos, respeito. Aliás, a mão pode estar sendo estendida não para ser apertada em sinal de concórdia (ah, se fosse!), mas, sim, para ser beijada por súditos leais e fiéis. Posso estar enganado, mas há entre os discursos bem-intencionados de Sua Excelência e a prática de seus primeiros quatro dias uma distância que pode ser comparada com a dos fossos dos castelos medievais, protegendo-os de intromissões da planície.
O pontapé inicial de seu antecessor e eleitor-mor da República Luiz Inácio Lula da Silva jogou para escanteio dúvidas que poderiam ainda subsistir quanto à prudência com que comandaria a política econômica, ameaçada pelo medo da ruptura com o mercado. E, sobretudo, com a estabilidade monetária e fiscal. Se a sucessora quisesse provocar surpresa similar, poderia, em vez de estender a mão, ter acenado com alguns gestos que, do alto da tribuna da primeira magistratura, sinalizassem ao povo todo, e não só aos militantes postados sob chuva na Praça dos Três Poderes, que a passagem da faixa presidencial poria fim aos hábitos de perdoador-geral de amigos e aliados de ocasião e inquisidor-geral dos adversários do patrono.
Nada indica que algo mudará na Corte da filha do búlgaro. Antes mesmo de ser empossada, ela leu nos jornais que seu escolhido para o Ministério do Turismo, o deputado Pedro Novais, do PMDB, que representa o Maranhão e mora no Rio (sendo esta a única condição que o aproxima do tema da pasta), pagou uma conta de R$ 2.156 num motel em São Luís. A mão estendida poderia ter sido usada para indicar ao incauto o rumo da porta de saída. Tivesse ela um assessor para cobrar gestos capazes de garantir que suas belas promessas se confirmariam com fatos positivos, teria dado o bom exemplo. É de duvidar que os paraninfos do indicado, José Sarney e Henrique Eduardo Alves, não tivessem à mão uma miríade de afilhados, alguns mais bem dotados para o posto, para substituí-lo. Mas ela não o fez.
A solução dada para o incômodo foi tipicamente lulista. Com a mesma desfaçatez com que o ex e atual presidente da Petrobrás, Sérgio Gabrielli, argumentou que homenageava o molusco ao dar o nome de Lula ao campo de petróleo que se chamava Tupi, o ministro de Relações Institucionais, deputado Luiz Sérgio (PT-RJ), disse que não se vai a um motel necessariamente para fazer amor. Com a gratidão garantida de todos os adúlteros que, flagrados entrando ou saindo dessas hospedarias de alta rotatividade, poderão argumentar que foram lá apenas para disputar um ingênuo torneio de gamão, o responsável pelas relações entre os Poderes Executivo e Legislativo chamou todos os brasileiros de idiotas. E seguiu à risca o cânone petista de tergiversar quando não há como explicar: ninguém está interessado – a não ser a mulher dele – no que o ministro foi fazer no motel. A questão é que pagou a conta com dinheiro público.
Aliás, a “gerentona” Dilma não perdeu outra oportunidade de mostrar que repetirá a prática das duas gestões Lula de fugir pela tangente, contando com o entorpecimento do público pagante, causado pela bonança econômica. A ministra da Pesca, Ideli Salvatti, derrotada na eleição para o governo do Estado de Santa Catarina, recebia auxílio-moradia, mesmo residindo em imóvel funcional. Como no caso de Novais, ela recorreu à heterodoxia habitual no PT: acusou um assessor de haver cometido um erro administrativo, não o identificou e reembolsou a viúva. Foi assim confirmada a jurisprudência petista para o abuso de poder: a devolução é a única exigência para o aliado ser perdoado.
Esse contraste entre as boas intenções e as práticas nefandas foi mais chocante na festa da posse. Pois, logo após ter prometido combate implacável à corrupção e aos malfeitos, a presidente recebeu cumprimentos no Palácio do Planalto de duas pessoas que não poderiam estar entre os dignitários da República ou do exterior que tiveram acesso a ela. José Dirceu responde no Supremo Tribunal Federal (STF) à acusação de ter chefiado uma quadrilha. Pode ser absolvido, mas ainda não o foi. Por que não esperar para brindar na festa da eventual absolvição? É possível argumentar que o ex-chefe da Casa Civil controla a máquina do Partido dos Trabalhadores (PT), na qual Dilma é neófita. Mas, mesmo assim, sua presença afrontou a boa moral republicana.
Nem essa atenuante existe para o caso de Erenice Guerra. Demitida da Casa Civil por suspeita de corrupção, ela é politicamente um zero à esquerda e só entrou no primeiro escalão federal por indicação da própria Dilma, que, aliás, negou tal fato mais de três vezes na campanha eleitoral.
Iniciados os trabalhos, o secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, com desenvoltura de porta-voz oficioso de Lula, em entrevista à Folha de S.Paulo lançou de novo a precoce candidatura do ex-chefe, cujo gabinete chefiou, em alerta à oposição de que este seria “um Pelé na reserva”. Reincidente na afronta a Dilma e à Nação que a elegeu e torce muito pelo sucesso do governo dela, e não pelo malogro que tiraria o ex-presidente do banco, o protagonista do escândalo de Santo André não foi sequer admoestado.
Para ter apertada ou beijada a mão estendida Dilma deveria ser mais assertiva e menos retórica: a ação precisa corresponder à fala.

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José Nêumanne Pinto

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