Machado visita Almino em romance de gênio

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Homem de papel traz o último protagonista do maior romancista brasileiro, com sua sutileza explícita, a fúria de Barreto e um toque de Rabelais, para coroar grande feito de nossa ficção

Uma obra-prima da literatura é uma peça muito rara, muito especial, de altíssima qualidade. Ser posta no alto de todos os pedestais e altares da crítica impõe um imenso respeito e também uma enorme solidão. Mas nem sempre esse píncaro significa esterilidade. Ao contrário: estar nesse pico pode gerar outro texto a merecer elogios dos críticos especializados. E também a satisfação de um grupo seleto, mas numeroso, de leitores. O efeito gerador da genialidade consta de dois dos mais lidos e celebrados romances do mestre dos mestres, Joaquim Maria Machado de Assis: Esaú e Jacó e Memorial de Aires, o canto de cisne do “bruxo” do Cosme Velho. Eles escalaram o Olimpo da ficção nacional e para lá deram passagem para Homem de Papel, de João Almino, editado este ano pela Record.
Tal livro entrega a um aficionado do mulato genial tudo o que, desde o título, seu texto promete. O protagonista e/ou narrador é um tipo centenário, no qual o maior romancista brasileiro empenhou sua genialidade e sua experiência: o conselheiro Aires. E aqui a palavra tipo pode ser empregada em todos os seus valores semânticos. Antes como personagem de uma peça de ficção, corpo dos logaritmos do passado, os chamados tipos móveis, de que se compunham as frases dos impressos em geral e dos romances em particular no começo do século passado. A narrativa foi transposta de um material original, do qual emergiu o texto do contexto da personagem e de seu tempo. Ao leitor pouco importa que tenham mudado as formas originais dos tipos, que saíram dos prelos oriundos da mecânica de Gutenberg. E saltitam nas máquinas compositoras eletrônicas atuais, no gênero da cibernética, descrita por Norbert Wiener, autor de uma manual profético de relevância técnica e científica reconhecida.
O Machado ressuscitado na composição eletrônica usada pelo diplomata (como a personagem) ressuscita em plena forma na figura recriada de um antigo conselheiro do Império para se tornar palpiteiro amador, ou melhor, não profissional, da “verdadeira” protagonista do livro, a colega Flor, na atual republiqueta. Isso se reproduz na atemporalidade das cenas vividas pelo Aires duplamente romanesco, quando algumas vezes ele se perde e se reencontra na confusão estabelecida entre a memória remota de uma crise desafiadora dos oitocentos e ressurge na lembrança próxima dos conflitos do atualíssimo segundo milênio. Trata-se evidentemente de uma tarefa espinhosa, um desafio e tanto, de vez que o autor contemporâneo empenha seu talento de escriba na recriação do tipo machadiano por se obrigar à verossimilhança. E este é o mais exigido dos atributos de um criador literário de qualquer época. Almino é potiguar de Mossoró e elegeu Brasília como lócus primordial de seus oito títulos de ficção. Machado, um urbanoide carioca de outra distante e praieira capital federal em plena deterioração da sétima, e talvez mais desastrada, reencarnação, do golpe da república privatizada, que o Aires original conheceu E assim teria convívio de menor familiaridade com um século inteiro de golpes e contragolpes armados até os dentes, contrariamente ao que ocorria no Segundo Império, cenário no qual viveu e trabalhou.
Almino, sertanejo no cerrado do Planalto Central, saiu-se desse qüiproquó com aquela característica reconhecida em seus ancestrais por Euclydes da Cunha, militar, gênio literário e vítima fatal da imperícia no manejo de armas: a têmpera, que não se traduzia no sinônimo mais comum, sempre a lembrar a força física. Reconstruir o mundo do amado de Carolina não é nem nunca foi uma tarefa de Hércules, e o fez com a finura afiada de uma adaga árabe ou de uma peixeira nordestina. Adestrado e bem-sucedido na saga homérica de voltar a Ítaca no romance anterior, o também magnífico (desde o título fidelíssimo) Entre Facas, Algodão, sobre o tema ancestral da volta ao pago sagrado, mostra no mais recente, sua intimidade absurda com a ironia refinada do criador de Aires. Ao qual acrescentou a crítica amarga e arrebatada de Lima Barreto, inspirador secreto de seu primor machadiano. Policarpo Quaresma passeia pelas páginas de Homem de Papel em cenas antológicas, caso do almoço entre os trigêmeos centrais da trama – um esquerdista de boteco, um oportunista de direita e uma “isentona” de almanaque -, talvez a que melhor resume as intenções do autor. Como no Brasil, onde um compadre do imperador o derrubou para criar uma república de opereta. Nela um camelô de feira reuniu embaixadores do resto do mundo para denunciar como fraudulenta a eleição da qual ascendeu ao poder discricionário, que exerce sem empatia nem civismo, sem sabedoria nem bom senso.
O protagonista que sai, literalmente, das páginas, para intervir na “falsa”, mas muito verossímil, farsa da permanência do desgoverno interminável dos medíocres (atenção, a palavra reproduz um eufemismo!), mantém a fúria de Barreto e a delicadeza de Machado quando abandona a sutileza de Sterne, herdada do vovô guanabarino. Fá-lo ao adotar no episódio final da anta a entronização da estupidez com a verve de Rabelais. Não é preciso recorrer à escatologia da descarga intestinal do tapir candidato para atingir esse paroxismo, talvez intencional do autor, porque, ao longo da descrição, o leitor deleita-se com a cultura enciclopédica do escritor, com a entrada da alimária-símbolo do integralismo de Plínio Salgado, intelectual de direita que o golpista da hora imita sem saber. Mas o faz de forma tão imprudente que acaba por mostrar que ignora até a anta de tênis, adotada como símbolo das poucas luzes da ditadura no Pasquim.
Saiba o leitor, que navega entre monstros e sereias, como o herói helênico depois da invasão de Troia por um cavalo de pau, que estes comentários irreverentes aqui expostos decorrem apenas de uma das muitas leituras da obra comentada. Essa parte da intromissão de um homem de papel na ficção brasileira com verve e delicadeza, dão-lhe todos os méritos para subir ao altar elevado do ciclo que a inspirou, como mais um produto do engenho do qual herdou o que de melhor nele há.
*Jornalista, poeta e escritor

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José Nêumanne Pinto

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