Serra não sabe se solta o pombo para atirar no falcão, que voa longe
Quando foram divulgados os resultados da última pesquisa CNT/Sensus com o presidente Lula dez pontos à frente do principal candidato da oposição, o prefeito paulistano, José Serra, no segundo turno, PSDB e PFL contestaram, com grande estardalhaço, os métodos empregados pelo instituto para chegar à surpreendente conclusão. A contestação caiu no buraco negro do noticiário político sem graça nem emoção deste começo do ano, mas, se pretendem mesmo voltar ao poder perdido há pouco mais de três anos, os líderes dos dois partidos deverão repensar com urgência a percepção do quadro e o planejamento da própria ação. Ou fazem isso ou entregarão a rapadura ao inimigo antes de junho, quando este lançará sua candidatura.
Da mesma forma como o terrorista suicida Roberto Jefferson, ex-amigo e ex-aliado da cúpula petista no governo, estilhaçou as bolas de cristal que davam a reeleição de Lula como líquida e certa com a denúncia do “valerioduto”, os profetas do apocalipse petista pós-escândalos se vêem obrigados a engolir seus prognósticos furados. No posto, com sorte, contando com a possibilidade de lançar mão de recursos economizados em três anos de governo, o presidente recuperou o favoritismo pela evidência gritante de que (1) está sozinho no palanque e (2) não precisa disputar nem anunciar a própria candidatura. Pode se dar ao luxo de tentar seduzir o eleitor sem concorrência nem escrúpulos: em vez de contestar a pesquisa, os próceres tucanos e pefelistas deveriam exigir da justiça um basta à desfaçatez do presidente, que viaja pelo País em campanha fingindo não ser ainda candidato.
Mesmo que não seja fácil arrancar da Justiça Eleitoral uma decisão capaz de enquadrar o chefe do Executivo, a oposição tem meios próprios para evitar esse passeio solitário dele nos palanques da reeleição. Para isso, precisa simplesmente anunciar ao eleitorado quem de seus líderes disputará realmente o pleito, pondo fim a essa dúvida que deixa Lula sozinho na campanha. E, sobretudo, ao canibalismo interno opondo os dois principais pretendentes – o prefeito de São Paulo, José Serra, e o governador do Estado, Geraldo Alckmin -, cuja ambição desmedida e cega está asfaltando o caminho da volta de Lula.
As pesquisas não deixam dúvidas de que Serra é o pretendente mais competitivo a alçar vôo do ninho tucano, principalmente após as demonstrações de que o noticiário das maracutaias de petistas e aliados não pôs fim ao sonho deles de ficar no poder. Mas não é fácil abandonar o mandato na prefeitura do maior município do País, conquistado com sacrifícios, antes sequer de completar sua primeira metade. É tolice cobrar dele a promessa de ficar no posto até o fim. A cada dia, porém, a dúvida entre ficar para governar ou sair para disputar acrescenta fichas valiosas ao cacife do oponente, além de cavar um fosso cada vez mais largo entre ele e o correligionário. Fala-se num prazo até a quarta-feira de cinzas para Serra decidir. Parece curto, mas não é: este é o momento em que se consolidam o favoritismo do presidente à reeleição e os obstáculos à necessária unidade da oposição para enfrentar uma candidatura presidencial forte sobretudo pela ausência de dúvidas existenciais. Lula já se decidiu pelo Pai-Nosso da “impunidade seletiva”- “perdoemos os nossos, sejamos implacáveis com os que nos têm ofendido e nos deixeis cair em tentação, sem livrar-nos do mal, amém” -, apoiado na presunção de que não perderá a eleição só por isso. Depois disso, é de uma pueril ingenuidade contar apenas com o “valerioduto” para minar suas chances nas urnas.
Tucanos e pefelistas parecem não ter aprendido bem as lições da campanha de 2002, quando sua bem-sucedida aliança de duas gestões foi derretida pelas desconfianças do clã Sarney de que havia dedo de Serra (leia-se Fernando Henrique) na exposição do dinheiro vivo no escritório da presidenciável Roseana (PFL-MA), em boa posição nas pesquisas. Agora esse papel desagregador está sendo repetido pelo outro tucano. Emparedado pelo objetivo único de disputar a Presidência, por não poder se candidatar mais ao governo do Estado e porque a senatória seria, além de reducionista, uma parada dura com a concorrência de um dos poucos petistas não atingidos pelos jatos de lama do escândalo do mensalão, Eduardo Suplicy, Alckmin comporta-se como um técnico de futebol que povoa o time com atacantes no segundo tempo por ter sido goleado no primeiro. A estas alturas do campeonato, essa tática de “perdido por um, perdido por mil” é, sobretudo suicida. Mas, como vão as coisas, nem a Velhinha de Taubaté, se ainda fosse viva, teria esperanças de que Sua Excelência tenha um súbito tranco de lucidez e enxergue o óbvio.
No momento, enquanto o prefeito paulistano ainda não sabe se solta o pombo para atirar no falcão que voa longe e o governador paulista não consegue perceber um milímetro além do espelho d’água em que se contempla no palácio, ambos dão ao presidente a chance de pular da maca e correr para o abraço. Ainda é cedo para qualquer prognóstico sobretudo porque, quando a campanha começar, não vai ser fácil para os governistas enfrentarem as imagens dos discursos de Roberto Jefferson, dos dólares na cueca do assessor do irmão do Genoino, dos achaques de Waldomiro Diniz e Maurício Marinho e de depoimentos comprometedores como o de Duda Mendonça. Elas são fortíssimas e corrosivas. Mas não bastam! Tucanos e pefelistas, depois de se entenderem, vão ter de encontrar um discurso para enfrentar algo bem mais sólido que meros indícios de malversação do Erário. Ou seja, a realidade inquestionável de que o cidadão brasileiro, seja ele informado ou não, não tem mágoas muito profundas da gestão petista. Não basta argumentar que foi sorte ou favorecimento do cenário externo. Será preciso ir além e apresentar uma alternativa atraente.
O Estado de São Paulo, 22.02.2006
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de O silêncio do delator, prêmio Senador José Ermírio de Morais, da Academia Brasileira de Letras, em 2005. Clique na capa para ter acesso à livraria virtual.
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