A retórica lulista despreza verdade, lógica e ética, pois o eleitor as ignora
“É humanamente impossível governar sem as medidas provisórias”, chegou a dizer o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua cruzada para fazer o Congresso votar o Orçamento da União e destravar a pauta de votações. A afirmação não tem, evidentemente, nenhuma base nos fatos históricos: de Tomé de Souza a José Sarney foi humanamente possível governar o Brasil sem MPs e sem a tal Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Esta também não ajudou Fernando Collor a administrar, uma vez que foi instituída por obra e graça da passagem do cirurgião Adib Jatene pelo Ministério da Saúde, produzindo ali a prova definitiva de que cirurgiões devem fazer cirurgias, deixando aos sapateiros da administração a tarefa de costurar as meias-solas nos Orçamentos. Houve, é claro, a exceção dos decretos-leis vigentes em regimes de exceção, mas estes só entram na discussão pela mera constatação de que as MPs são hoje o que eles foram ontem.
Em mais uma daquelas análises históricas nas quais seus interesses imediatos prevalecem sobre os fatos ocorridos, Sua Excelência afirmou que “a medida provisória quando foi instituída, no Congresso, na Constituinte de 1988, ela veio porque todos nós ficávamos cansados de decreto-lei” (sic). Não é nada disso, é claro! A imprecisão do tortuoso raciocínio presidencial deve ter nascido do fato de seu partido, o PT, se haver recusado a assinar a Constituição, por considerá-la uma Carta burguesa, inadequada à linha socialista, de rompimento com o sistema financeiro internacional, por ele adotada à época. Tendo jurado duas vezes sobre a Carta Magna que se recusara a assinar, Lula poderia, contudo, ter aprendido que MPs são recursos parlamentaristas para evitar por delongas congressuais a paralisação da gestão, principalmente da economia, neste planeta globalizado em que cada vez mais tempo é ouro. A imposição pelo presidente à época das discussões na Constituinte, José Sarney, do presidencialismo como regime vigente no País instituiu, de fato, um parlamentarismo capenga, no qual o presidente manda quase tudo e os parlamentares não se responsabilizam por nada. Nem por legislar, que seria sua função precípua num regime tripartite de Poderes autônomos.
Na verdade, a democracia é um sistema complicado, no qual os mandatários precisam negociar com os ranhetas da oposição para adotar as providências que acham adequadas, mesmo contando com o apoio da maioria do eleitorado. Isso exige paciência e tempo. Juscelino Kubitschek não precisou de MPs para impor à Nação o erro da construção da capital isolada e imune à pressão popular. Mas a impaciência de Jânio Quadros com o Congresso o levou à tentativa do golpe e, frustrado este, à renúncia. Da mesma forma que a inabilidade de Fernando Collor de lidar com o Poder Legislativo o empurrou, abismo abaixo, para o impedimento. Já Getúlio Vargas, em 1937, e os militares, em 1964, resolveram a questão fechando o Congresso.
“As coisas precisam acontecer, muitas vezes, é mais rápido do que o tempo das discussões democráticas que são necessárias acontecerem no Congresso” (sic), disse Lula. No meio desse labirinto estilístico espreita o touro descontrolado do poder unívoco. Em nome de urgência e necessidade, o Executivo faz as vezes do Legislativo. E este renuncia ao poder de elaborar molduras legislativas para cenários governamentais, passando a funcionar como um semipoder carimbador, a chancelar com “amém, sim, senhor” ou rejeitar com “não vem com essa” as ordens recebidas de cima. Trata-se de um jogo de acomodamento duplo, no qual um faz o que não lhe cabe para o outro não ter de cumprir o próprio dever. A MP é uma mão na roda para governantes comodistas fazerem valer seus caprichos sem ter de expô-los à discussão pública e também para parlamentares cada vez mais interessados em benesses orçamentárias e menos preocupados com os gemidos da multidão ignara, que os elegeu. “Chega de choramingar”, resumiu, à perfeição, o inefável Lula.
O presidente e seus seguidores, no governo ou no Legislativo, não ligam a mínima para os fatos, passados, presentes ou futuros, negados por sua retórica aparentemente canhestra, mas inegavelmente sedutora. Lula não fala para entrar na História, mas para manter cativo seu eleitorado encantado. E nisso ele é mestre. Exemplo desse poder encantatório de sua palavra tosca são as críticas que tem feito aos senadores da oposição que se aproveitaram da necessidade das discussões democráticas no Congresso para impedir mais uma prorrogação da CPMF. A evidência de que a arrecadação de impostos federais cresceu duas vezes mais que a economia, mesmo sem a entrada dos recursos propiciados pelo imposto do cheque, desmentiu a teoria presidencial do desserviço prestado pelos oposicionistas “não ao governo, mas ao País”. E daí? Mesmo com as burras abarrotadas, Lula continuou execrando os adversários que o bateram na luta parlamentar pelos recursos que deixaram de ser carreados para a “saúde do povo”. A intenção desse discurso é levar o pobre freqüentador do inferno da saúde pública (que ele próprio alçou às raias da perfeição) a não punir o mau gestor do momento, que não carreou os recursos orçamentários necessários para sanear o sistema, mas seus oponentes que o derrotaram no Parlamento.
A retórica lulista – segundo a qual, “se porrada educasse, bandido saía da prisão santo”, entre outras pérolas – pode soar incoerente e inconseqüente aos cultores da verdade, escravos da lógica e súditos da da ética. Mas soam como música sacra aos ouvidos dos pobres, que a entendem muito bem, pois a verdade lhes é dispensável, não há lógica em seu cotidiano e a ética de nada lhes serve. Esse discurso e este governo são o “humanamente possível” para nosso Brasil.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 02 de abril de 2008, p. A2, Opinião