A onda junina da raiva popular virou esgoto em que chafurdam ratos oportunistas e covardes
Em junho as multidões ocuparam as ruas das grandes cidades brasileiras, assustando os políticos governistas e surpreendendo os da oposição, acendendo o sinal de alerta do Poder Judiciário e dando à sociedade a ilusão de que o gigante tinha acordado e o monstro da opinião pública devoraria os inimigos do povo.
Tudo começou com uma manifestação contra o reajuste das tarifas dos transportes coletivos, que logo se tornou reclamação contra a péssima qualidade da mobilidade urbana. A classe média engrossou o caldo para gritar contra as óbvias mazelas de um Estado que arrecada muito para que os donos do poder fiquem com praticamente tudo, quase nada restando para a gestão decente dos serviços públicos. A corrupção prejudica todos os que não são corruptos e só beneficia ladrões e traficantes de drogas. Basta ver que, como publicou este jornal anteontem, a caça aos larápios totalizou 20,7% das missões desencadeadas pela Polícia Federal de janeiro a agosto deste ano nos Estados e em Brasília, enquanto ações contra o tráfico de drogas somam bem menos – 16,9% dos casos. A inflação atinge diretamente o bolso do pobre, a primeira vítima da péssima gestão pública em educação, saúde e segurança.
Agora, dois meses depois, percebe-se que quem confiou na revolução direta das ruas, ao contrário de Chapolim, não contava com a astúcia de quem domina as manhas do regime patrimonialista. Este, na prática, nunca se renova, desde os tempos da colônia, do Império, da República Velha, das ditaduras de Vargas e dos militares e dos interregnos democráticos que as substituíram.
Após algum tempo de mutismo, decerto provocado pela perplexidade da inexperiência, Dilma Rousseff convocou rede de televisão para, em seu estilo “balança, mas não cai”, tentar convencer seus críticos de que o povo queria dar-lhe e a seu partido instrumentos para não largarem o suculento bife do poder, deixando o osso da eterna oposição para os adversários: financiamento público de campanha, voto em lista, etc.
O Congresso Nacional, composto por macacos velhos mais espertos do que ela, adotou o sistema Vampeta de agir. O volante baiano definiu assim sua relação trabalhista com o clube de futebol mais popular do País: “O Flamengo fingia que nos pagava e nós fingíamos que jogávamos”. Deputados e senadores repetiram essa malandragem até que a falseta foi desmascarada na votação secreta em que os primeiros deram ao colega Natan Donadon (ex-PMDB-RO) ocupação inusitada de legislador-presidiário. Logo depois, o mesmo plenário inventou – no país onde há leis que vingam e outras, não – a norma aprovada para nunca valer, ao tornar abertas quaisquer votações em parlamentos.
Assim como se espantaram com a explosão de raiva da população contra as escolas de lata, os pacientes morrendo nas macas em corredores de hospitais públicos e outros flagelos nacionais e fingiram que nada tinham que ver com essas queixas, governantes, parlamentares e magistrados temeram o Dia da Pátria. Tratava-se do mais apropriado feriado, pensaram, para o monstro voltar às ruas e despertar o gigante adormecido em berço esplêndido. Mas junho acabou no sábado.
Como aconteceu muitas vezes na História e foi registrado com clareza e estilo por Karl Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, a onda da indignação de todos contra tudo se dissolveu num esgoto povoado pelos ratos oportunistas de sempre. O Executivo brinca de médico cubano, dando um dinheirinho aos tiranos Castro de Cuba e fingindo que com a caridade resolve os problemas perenes dos prontos-socorros sem penicilina, macas e gaze. O Legislativo abre uma sucursal no presídio, enquanto os petistas do governo distrital em Brasília têm de ser obstados por um juiz para não concluírem um puxadinho de luxo para mensaleiros condenados. E no Judiciário prima a lerdeza, em vez da justiça, como de hábito.
Das manifestações de junho sobrou o que há de pior: a destruição generalizada dos anarquistas mascarados, que deixaram no caminho seu rastro ofensivo de ódio, sem relação alguma com a ira defensiva popular; e a covardia dos gestores públicos, que preferem perder a autoridade a arriscar-se a perder a eleição. Nada foi feito para debelar a inflação, a corrupção e a péssima gestão pública em geral, principalmente no que toca a educação, saúde e segurança. Nenhum mecanismo institucional foi criado para favorecer o encurtamento da distância abissal entre o representante e o representado. E a Justiça permanece lerda e caolha, surda para quase todos e muito sensível aos melindres dos privilegiados que têm alguma proximidade com a toga.
O rescaldo negativo da bela manifestação popular, contudo, recende a matéria orgânica apodrecida. Nenhuma autoridade foi exercida para garantir que o cidadão comum se locomova em seu hábitat. Ao contrário, quaisquer grupelhos de gatos-pingados com uma palavra de ordem continuam a impedir o trânsito de ambulâncias em vias como a Paulista, em São Paulo, e a Rio Branco, no Rio, entre outras. Com a mesma estridência com que reclamam, com justiça, dos parlamentares escondidos sob o sigilo do voto, querem que mascarados sigam promovendo quebra-quebras nas ruas. Até o inefável baiano Caetano cobriu o rosto com uma camiseta em defesa desse direito e pedindo paz, equiparando os predadores vândalos a inocentes foliões de máscara nos blocos de sujos do carnaval.
Essa mixórdia resultou no triste Dia da Pátria de 2013. Com medo da violência, o povo ficou em casa, faltando aos protestos convocados nas redes sociais e aos desfiles da comemoração da Independência. Mas os grupelhos de vândalos deixaram sua marca nada simbólica por onde passaram, chamando a atenção geral para o pesadelo do monstro adormecido em catre mísero e para a perda da noção da data nacional – e um símbolo maligno destroçou um símbolo benigno.
Jornalista, poeta e escritor
(Publicado na p. A2 do Estado de S. Paulo na quarta-feira 11 de setembro de 2013).