Na posse na ABL, o autor de Aquele Abraço contestou a “guerra em favor da desrazão”, ora em curso no Brasil, e prometeu “colaborar para o debate, em prol da cultura e da justiça”
A escolha de Gilberto Passos Gil Moreira para a cadeira 20 da Academia Brasileira de Letras provocou estranhamento por não ser ele propriamente um profissional da literatura, mas um compositor e cantor muito popular. A escolha deu-se num momento de renovação da instituição, fundada por Machado de Assis e Joaquim Nabuco há 125 anos, depois das opções dos imortais pelos cineastas Nelson Pereira dos Santos e Carlos Diegues e pela atriz de teatro Fernanda Montenegro. Esta tomou posse de sua vaga este ano, assim que as sessões presenciais foram retomadas no Petit Trianon. A primeira mulher a vestir o fardão foi a genial romancista Rachel de Queiroz há 45 anos, oito decênios após a fundação.
À luz de nossos tempos, a estranheza não deveria ter sido causada pela eleição de um ser humano do gênero feminino, mas, sim, pelo fato de ter demorado tanto tempo para a ABL deixar de pertencer ao clube do Bolinha. O mesmo pode-se dizer do compositor, instrumentista e intérprete baiano, primeiro representante da música popular a tomar posse no salão nobre da instituição. Afinal, pode até haver alguém que torça o nariz para a inovação na gestão do jornalista Merval Pereira na presidência da ABL, Mas dificilmente surgirá um crítico habilitado a discutir com um dos patronos da indicação de Gil, o poeta capixaba (como Roberto Carlos, Carlos Imperial e Rubem Braga) Antônio Carlos Secchin. Pois este, ao falar sobre a preparação do discurso que o saudaria, me deu a oportunidade de definir o escolhido com uma expressão curta e exata: “um poeta fino” (vide Dois Dedos de Prosa, no canal José Nêumanne Pinto no YouTube, de 14 de dezembro de 2021). Se alguém ainda assim duvidar do mérito do novo acadêmico, está convidado a localizar no YouTube dois discursos recentes: o do próprio artista e o do acadêmico que o saudou.
Primeiro a discursar na sessão da própria posse, Gil demonstrou, de saída, seu entendimento perfeito da missão que lhe cabe na instituição da qual agora faz parte. Disse ele: “A Academia Brasileira de Letras é a Casa da Palavra e da Memória Cultural do Brasil. E tem uma responsabilidade grande no sentido de fortalecer uma imagem intelectual do país que se imponha à maré do obscurantismo, da ignorância, e demagogia de feição antidemocrática. Poucas vezes na nossa história republicana o escritor, o artista, o produtor de cultura, foram tão hostilizados e depreciados como agora. Há uma guerra em prol da desrazão e do conflito ideológico nas redes sociais da Internet, e a questão merece a atenção dos nossos educadores e homens públicos. A ABL tem muito a contribuir nesse debate civilizatório. E eu gostaria, efetivamente, de colaborar para o debate, em prol da cultura e da justiça.” Não poderia ter sido mais consciente, assertivo e corajoso no momento em que o Brasil mergulha em trevas de ignorância, violência, covardia e brutalidade.
Ao inovar radicalmente, iniciando a saudação em silêncio para se ouvirem, ao apagar das luzes do auditório, os primeiros versos de Lunik 9, espécie de hino do tropicalismo, em que o novo colega militou, o encarregado da saudação calou. A citação do satélite da Terra lembrou o apelido do gênio da canção nordestina, Luiz Gonzaga, que amigos como Gil conheciam como… Lua. E, depois de dissecar uma obra-prima que o introduzido produziu, Flora, em homenagem à musa e mulher, com raras erudição e precisão, o crítico completou: “Num verso famoso, Mário de Andrade contabilizou: ‘Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta’. Mas, diante de sua obra, Gil, esse total é insuficiente, não expressa a abrangência de sua produção, e tampouco dá conta da sua importância ou exprime o nosso respeito pelo seu desempenho na vida artística e cultural do Brasil. A cadeira 20 vai comportar muitos Gilbertos. Por isso, equivoca-se quem supõe que a ABL esteja simplesmente acolhendo Gilberto Gil; na verdade, ao acolhê-lo, ela se engrandece com a chegada do múltiplo Gilberto Mil.”
A metáfora feliz inspirou o presidente da ABL, Merval Pereira, a registrar no Globo a “coragem moral” do compositor de Domingo no Parque. Pois, ao cumprir o dever de todo acadêmico de relembrar a imortalidade dos colegas de assento abordando sua obra, ele não tergiversou sobre o general Aurélio de Lyra Tavares, membro da Junta Militar, que expulsou Gil e seu parceiro Caetano Veloso do País, durante a ditadura, iniciada em 1964 e brutalizada em 1969. Sem apelar para o facilitário, em que muitos escorregam, de lembrar a obra poética atribuída ao oficial com o pseudônimo de Adelita, ao contrário, desafiou a atenuante, não justificando o antecessor nem apedrejando a Academia. Da mesma forma, referiu-se ao fardão cênico que usou na capa de seu segundo álbum como o que a imagem representa: a rebeldia de um militante da democracia adaptado ao combate que ora assume; da restauração da cordialidade e do nojo à brutalidade. Com total entendimento do papel deste como líder da esquadra dos combatentes da liberdade e da justiça, Merval pontificou: “Gestos de grandeza moral que servem de exemplos para os dias de hoje.”
De fato, Gilberto Mil, como cunhou Secchin, fazia parte há 52 anos de um grupo de artistas populares que pagaram com a liberdade e a expulsão da Pátria por sua aversão ao regime. Como outro afrodescendente, o cabo da Marinha João Cândido, líder da revolta da chibata, em 1910, cujos bordados a Bienal de São Paulo expôs até dezembro 0passado. E hoje ele age como Nelson Mandela, que cumpriu pena durante 26 anos para, ao sair da cela, liderar o processo pacífico que exterminou o infame apartheid, que excluía seu país, a África do Sul, do convívio do mundo civilizado.
*Jornalista, poeta e escritor
Gilberto Mil, João Cândido e Mandela
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