Conforme a moral petista, a ausência de culpa elimina a existência do crime
Quem viu neste jornal a foto do ex-assessor Freud Godoy marchando ao lado do presidente Lula se lembrou menos do psiquiatra vienense, em quem seu pai se inspirou para lhe dar o nome, que de um contemporâneo dele. Cesare Lombroso ficou famoso por ter elaborado uma das teorias mais furadas da ciência em todos os tempos: a de ser possível identificar as intenções criminosas de um ser humano pela conformação óssea de seu rosto. Numa prova de que um equívoco, mesmo fartamente negado por experiências científicas posteriores, como é o caso deste, pode tornar seu autor famoso até muito depois da morte, o substantivo próprio que define o sobrenome do autor da falsa teoria ganhou foros de adjetivo em várias línguas. Ainda hoje, passou a ser chamado de lombrosiano todo e qualquer indivíduo que, na gíria menos erudita, é tido como mal encarado ou coisa semelhante. E nosso Freud, ou melhor, o Freud do PT e do presidente Lula, é uma figura lombrosiana.
Não por ser extraordinariamente feio ou pelo fato de ser um homem alto, forte e espadaúdo, como convém a quem ganha o sustento como segurança, o que exige mais força muscular que um cérebro bem dotado para assegurar a vida do chefe – no caso, não um superior qualquer, que seja apenas dele, mas de um governo inteiro ou, como se designa institucionalmente no Estado de Direito, de toda a Nação. Se confirmada sua participação no grotesco caso da confecção de um dossiê falso para incriminar o adversário do PT favorito ao governo de São Paulo, José Serra, o Freud do Torto (assim dito por ser convidado aos churrascos com que o líder máximo homenageia amigos e aliados) será mais um lombrosiano da mente, da alma, que da configuração dos ossos da própria fácies. E, ainda que não seja o autor intelectual do delito, conforme garantiram à polícia o petista de carteirinha Valdebran Carlos da Silva Padilha e o advogado e ex-agente da Polícia Federal Gedimar Pereira Passos, pilhados com R$ 1,75 milhão em notas de real e dólar para pagar pelo tal dossiê, que lhes seria entregue por Paulo Roberto Trevisan, tio de Luiz Antônio Vedoin, o chefão da máfia das sanguessugas, sua mera condição de elo entre tais criminosos e o presidente da República já bastaria para configurar um escândalo de proporções consideráveis.
As dimensões deste escândalo não se medem pela denúncia dos petistas presos com a boca na botija, mas pelo que o Freud sem divã falou, além de onde e como o fez. Primeiro, ele contou que foi apresentado ao tal Gedimar (“funcionário da Direção Nacional do PT e responsável pela segurança do comitê de Lula”) por Jorge Lorenzetti, amigo e “churrasqueiro” do presidente na Granja do Torto. E, depois, disse que, antes de viajar para discursar nas Nações Unidas, o chefão lhe telefonou para questionar sua eventual participação no episódio. “Se o problema do senhor de governar e de campanha for isso, pode dormir tranqüilo”, teria respondido.
Ou seja, nunca antes, para usar a expressão favorita de “nosso guia máximo”, alguém tão próximo de um presidente da República reconheceu de público se haver aproximado tanto do protagonista de uma falcatrua tão sórdida e tão estúpida quanto essa confecção de um dossiê para incriminar um adversário. E, ainda assim, ele acha que o chefe não terá por que se preocupar. Trata-se do fenômeno petista da absoluta ausência de culpa. Freud, o austríaco, revolucionou a psiquiatria encontrando no desejo libidinoso do filho pela mãe (o complexo de Édipo) a origem da culpa que a tradição judaico-cristã atribui ao pecado original. Jung, o primeiro a ousar desafiá-lo, extrapolou as fronteiras do pansexualismo transferindo para qualquer desejo, não apenas o sexual, as raízes desse mecanismo psíquico. Os petistas, fundadores do lombrosianismo moral, decretam que não terá havido crime se seu autor nunca admitir a culpa. “Se não me sinto culpado pelo crime que cometi, não cometi crime algum” – eis uma tradução livre de tudo quanto disse nosso Freud do Torto.
O presidente Lula poderia ter cobrado do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, um relatório detalhado e urgente sobre a participação de seu Gregório Fortunato particular no caso – que ele próprio condenara, seguindo as normas da boa convivência em disputas eleitorais. A Polícia Federal, por este comandada, contudo, se tem mostrado particularmente lerda quando convocada a investigar suspeitos do peito (ou de perto) do líder supremo: até hoje não produziu um relatório decente sobre o achaque de Waldomiro Diniz, ex-companheiro de quarto de José Dirceu. E, ao contrário do que faz de hábito, quando convoca a imprensa para anunciar alguma operação contra quadrilhas do colarinho branco, desta vez poupou os companheiros petistas flagrados da exposição imediata às indiscretas câmeras dos jornais e da televisão. Fiel ao hábito de sempre confiar mais na palavra de um amigo e em pesquisas de opinião que em diligências policiais, Sua Excelência voou para Nova York sem temer seja pelo mandato que ainda não cumpriu, seja pelo próximo, que vai disputar nas urnas mês que vem.
E aqui, infelizmente, resta o pior dessa moral mafiosa, na qual a garantia do assessor de fé vale mais que o inquérito impessoal de um policial: o sono de Sua Excelência não deve ter sido perturbado por essa “falha” de um companheiro de caminhadas. Por muito menos que isso, Watergate detonou Richard Nixon. Mas este país é outro e entre nós vige o costume de que a proximidade do poder não obriga ninguém a andar na linha, mas lhe garante o direito a gozar do benefício de que o afastamento da boquinha é punição bastante para remir qualquer “engano” e livrar o chefe de todo o mal.
© O Estado de S. Paulo, página A2, quarta-feira, 20 de setembro de 2006.