Execução de iraniana é problema político, e não humanitário, pois viola exercício de cidadania
A recusa pública do iraniano Mahmoud Ahmadinejad à oferta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de acolher no Brasil um dos vários incômodos que queimam seu filme no cenário internacional, a viúva Sakineh Moahammadi Asthiani, permite ao autor destas linhas voltar ao tema tratado há 15 dias neste espaço, se para tanto obtiver a vênia e a atenção do leitor. Pois, feita em entrevista à televisão, como reafirmação do direito sagrado à soberania da população de seu país, a negativa em atender à mão estendida pelo parceiro que desafiou o consenso ocidental de compreensão do perigo representado por uma tirania que se oculta sob o véu do fundamentalismo religioso para afrontar a civilização de maneira bárbara repõe em seu devido lugar alguns conceitos que estavam sendo postos de pernas para o ar.
No dia em que este articulista saudou a iniciativa, apesar de adotada em local impróprio, um palanque de campanha eleitoral, de oferecer a saída honrosa ao regime iraniano, ao lado de uma brilhante aula de ética sobre o mesmo tema dada pelo professor da Unicamp Roberto Romano, noço guia universal resumiu seus enganos a esse respeito numa frase curta e grossa. Ele tornou pública sua justificativa de intervenção como sendo um problema humanitário, e não político. Seu engano é capital e resulta, primeiramente, de ter faltado a aulas fundamentais de História nas quais devem ter sido explicitadas as distinções básicas entre barbárie e civilização. E também, em segundo lugar, da dificuldade que Sua Excelência tem de distinguir o certo do errado, diretamente proporcional à facilidade que sempre teve de saber o que lhe é conveniente e o que não lhe convém. Some-se a isso a percepção megalomaníaca enganosa, permitida pelos altos índices de popularidade (78%, segundo o Ibope mais recente) que lhe lustram o ego inflado, de que a conveniência do chefe de governo é, por definição, o destino da Pátria.
De fato, a vida de Sakineh Ashtiani é um bem precioso, tão respeitado pelas religiões antigas que floresceram no Oriente Médio, ali pelas proximidades de Teerã, que os judeus não permitem o sepultamento de quem a elimina com as próprias mãos no mesmo território sagrado onde repousam os restos mortais daqueles que Javé convocou a seu convívio. O clérigo anglicano John Donne, poeta metafísico inglês que viveu meio milênio antes de Sakineh, registrou num verso magistral o conceito que os cristãos herdaram dos ancestrais do profeta galileu. “A morte de cada homem diminui-me, porque sou parte da humanidade. Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram: eles dobram por ti”, reza a epígrafe do famoso romance do americano Ernest Hemingway sobre a Guerra Civil Espanhola, Por Quem os Sinos Dobram.
Mas por mais que a humanidade sempre tenha chorado a morte de cada um de seus membros – e entre todos a iraniana também significará a amputação de um de seus bilhões de viventes que compartilham a graça e a aventura de viver nesta mesma quadra histórica –, a execução dela é um drama político, e como tal deve ser tratado. Porque diz respeito às sangrentas lutas para conquistar o elementar direito ao livre-arbítrio que o mesmo gênero humano empreendeu para sair de seu estado de violência tribal e entrar num estágio de convívio civilizado. A violência bárbara do Estado iraniano sai, portanto, da alçada de Madre Tereza de Calcutá para merecer a atenção dos colegas contemporâneos do Mahatma Gandhi. Salvar-lhe a vida não se limita a um gesto de caridade religiosa, mas passa a ser uma obrigação de cidadania. Pois os que se arvoram em seus carrascos atuam no pressuposto inaceitável de que têm sobre ela direitos de vida e de morte sob o pretexto de hábitos ancestrais que não condizem com as regras civilizadas que regem hoje a pacífica convivência entre seres humanos soberanos e iguais perante Deus e a lei dos homens.
A presunção absurda de que uma viúva possa ter cometido adultério e a exigência de reparação ao dever de ser fiel a um parceiro extinto vão na contramão do mais luminoso avanço do século 20, que lança luz sobre seus porões sombrios: o da conquista pelos seres humanos do gênero feminino da igualdade em relação às pessoas do sexo masculino. Das pioneiras da luta sufragista de cem anos atrás à queima dos sutiãs há 50 resultou o reconhecimento universal do direito que mães, irmãs, esposas e amantes passaram a ter ao trabalho, à remuneração justa e à posse do corpo, o que inclui as delícias do prazer carnal e da livre escolha da companhia à escrivaninha, à mesa e à cama. Reconhecê-lo não é só um ato de caridade cristã, mas o atendimento de uma prerrogativa cidadã. O respeito à liberdade alheia – e, mais do que isso, a disposição de lutar por ela – não é uma atitude altruísta, mas uma postura de interesse próprio. Pois o aspecto racional, que distingue o ser humano dos outros animais, que são irracionais, permite enxergar que a liberdade de qualquer um termina onde começa o livre-arbítrio de outrem. Só pode ser verdadeira e integralmente livre quem empregar seu empenho e seu engenho na garantia de que a liberdade individual sempre deve prevalecer sobre quaisquer outros valores, menos o da vida, servindo a autoridade legítima, constituída no Estado democrático de Direito, fundamentalmente, para impedir qualquer abuso de seu emprego, na medida em que este prejudique o livre-arbítrio do próximo. Quanto mais livres forem todos, mais livre alguém será.
O desconhecimento desse primado levou Lula a esta tragédia de erros de sua política externa, que condiciona a defesa dos direitos humanos ao também legítimo usufruto do lucro nas relações entre povos, que devem ter respeitada a soberania sem, porém, afrontar princípios civilizatórios, sem os quais a diplomacia não passa de fria farsa. É por isso que o fantasma da mulher a ser sacrificada ao monstro cruel da arbitrariedade vai pairar para sempre sobre nossa cabeça.
O Estado de S.Paulo
18 Agosto 2010