Enchendo o bolso do rico e a barriga do pobre

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Os milionários podem dormir em paz, desde que os pobres comam
O autor destas linhas não é o mais fanático dos crédulos nos índices da pesquisa CNT/Sensus que consagra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, com a maior aprovação popular desde 2003 e o governador José Serra, do PSDB, como o grande favorito à sucessão dele daqui a dois anos. Pode até ser que o prestígio do chefe do governo federal não tenha atingido os píncaros de 66,5% nem que o favoritismo do chefe do Executivo estadual paulista seja tão absoluto e tão isolado como esta registra. Mas, por menos confiáveis que sejam os dados da CNT/Sensus, ambos estes fenômenos políticos podem ser definidos pelo que o gênio de nossos palcos Nelson Rodrigues chamava de “óbvio ululante”. Quem imagina que o escândalo dos cartões corporativos seria capaz de fazer minguar a popularidade presidencial, repetindo a tolice cometida pelo tucano Geraldo Alckmin na última disputa presidencial, pode tirar o cavalinho da chuva.
Quando estourou o escândalo do mensalão e ficou evidente que o petismo oficial não tinha resposta à altura às evidências turvas do esquema de compra escusa de apoio parlamentar, o PSDB e o antigo PFL, hoje DEM, passaram a viver o doce sonho de noivar com o trono da monarquia presidencial. Ledo e ivo engano: não era nada daquilo! O então governador paulista Geraldo Alckmin e seu colega de partido José Serra, à época na prefeitura da Capital, se engafinharam num vale-tudo suicida pelo lugar que parecia garantir a um ou ao outro o troféu maior, depois de a desfaçatez com que o PT jogou no lixo o patrimônio ético ter apontado para o naufrágio da reeleição do chefe do governo. Ao perder para Alckmin a indicação para a disputar a presidência, José Serra saiu mais que consolado da derrota com o triunfo para o governo do maior Estado da Federação, pela primeira vez na história logo no primeiro turno. Ao ex-governador, coitado, restaram as batatas tostadas na disputa interna e na chegada improvável ao segundo turno, propiciada pelos aloprados petistas que tentaram impedir a vitória inevitável de Serra em São Paulo com uma falsificação grosseira de documentos para provocar um escândalo e salvar da morte certa as ambições do senador Aluizio Mercadante.
É difícil saber se, como disse em juízo o ex-deputado Roberto Jefferson, que delatou o mensalão, o caso dos cartões corporativos tem, de fato, o mesmo grau de podridão que o anterior. Há, obviamente, uma diferença capital entre um episódio que levou ao cadafalso o homem tido como o mais forte da República depois do presidente, o ex-chefe da Casa Civil e ex-deputado do PT José Dirceu, e o outro, cuja única vítima até agora é Matilde Ribeiro, notabilizada por defender o racismo dos negros contra os brancos e não pelo poder ou pelo desempenho no cargo de ministra da Igualdade Racial. Mas não é sensato esperar que este produza efeitos de monta no apoio ao chefe do governo federal ou no quadro eleitoral municipal de outubro que vem.
A inabalável imagem positiva de Lula, apesar dos consertos de mesa de bilhar e compras de tapiocas pagos com dinheiro público por seus ministros, não se deve, certamente, a uma espécie de revestimento sobrenatural, ao estilo do teflon, que evita que ele se emporcalhe com a lama produzida por companheiros que lhe são próximos e caros. Nem à blindagem garantida pelo zelo de suas bases de apoio no Congresso e pela incompetência de uma oposição incapaz de enxergar um palmo à frente do nariz, cuja obtusidade ulula na forma com que o deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) negociou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) mista composta por 14 governistas e 7 oposicionistas. Lula não tem a pele besuntada por uma vaselina especial que evita a chegada dos golpes dos adversários nem a roupa dos astronautas para evitar queimaduras de fogo amigo. Ele simplesmente descobriu há bastante tempo o caminho das pedras que o faz, aparentemente, caminhar sobre as águas, enquanto os adversários afundam quando pensam flutuar. Seu segredo é muito simples: com a radicalização do programa econômico do PSDB de Fernando Henrique, posto por ele sob controle do especialista Henrique Meirelles, afugentou o fantasma da inflação dos lares operários e da classe média. A politica econômica austera e os ventos favoráveis da economia internacional o permitem aplicar o teorema mais inteligente da administração política (e não pública) da História da República. Nunca antes neste País os banqueiros tiveram lucros tão espetaculares quanto os anunciados nos últimos dias. E isso no meio da explosão da bolha imobiliária americana, que assusta o primeiro mundo, mas passa ao largo do Brasil, não tendo cruzado o Atlântico nem outro mar nenhum.
Egresso do Planeta Fome, como disse Elza Soares ao se apresentar como caloura no programa de Ary Barroso, Sua Excelência sabe muito bem que a contrapartida para o sono tranqüilo dos banqueiros deve ser a saciedade dos miseráveis: os banqueiros podem ressonar à vontade, desde que a barriga dos pobres não ronque. Imaginar que a elite financeira vai pôr em risco seus lucros espetaculares por ter uma ministra sem expressão gasto dinheiro público em free shop e que as favelas vão rufar seus tambores de guerra porque o ecônomo que abastece a despensa da primeira família usa de forma perdulária recursos retirados da economia em forma de impostos equivale a esperar o desembarque de Papai Noel no verão tórrido em pleno semi-árido.
O favoritismo de José Serra na sucessão de Lula, impedido de disputá-la pelos cânones constitucionais vigentes, é outra dessas obviedades que sacodem estádios em partidas finais de campeonatos. Difícil é crer que, tendo criado a receita do povo feliz com o milionário mais rico e o miserável saciado, Lula não se deixe tentar pelo diabinho do terceiro mandato.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008, p. A2, Opinião

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José Nêumanne Pinto

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