Em O Vento do Mar, Lêdo Ivo mistura gêneros para traçar
um perfil de si mesmo e de alguns célebres contemporâneos
O vento do mar, de Lêdo Ivo, reúne lembranças, entrevistas, perfis e poemas. Em que gênero classificá-lo? Se tivesse de arriscar algum, talvez fosse o caso de defini-lo como “xis tudo” ou “mexidão”, adotando a gíria antiga das redações, que o autor andou frequentando pela vida afora. É isso o mesmo: de tudo um pouco e tudo de bom. Então, seria o caso de constatar que é por aí que começa a se delinear a literatura do presente, olhando para a frente. O portenho Jorge Luis Borges fundou várias vezes esse gênero do não gênero: pintou na página é texto. Já não há mais limites entre ficção e realidade, caíram as barreiras que antes separavam poesia e prosa – a palavra só quer saber de ser bem servida, não importando a moldura em que se a pendura.
O livro de Lêdo é para ser lido com prazer e prontidão. Para tanto, o poeta coletou momentos de antologia numa imprensa que já houve, mas foi arrastada para fora das páginas, como o foram os linotipos das oficinas gráficas ancestrais. No reino tirânico do politicamente correto, no meio da baba viscosa da bajulação explícita que contamina a tinta de impressão, é um refrigério e uma relembrança reler “O mundo concentracionário de Graciliano Ramos”, um perfil ao mesmo tempo afetuoso e implacável do velho Graça. O autor de Vidas secas salta do retrato traçado em palavras do conterrâneo em sua inteireza, na qual a esqualidez e o rigor da escrita são produzidos pelas manias contraditórias (e, portanto, humanas) do revisor impiedoso, do romancista ranzinza e do gracioso narrador de “causos” do sertão. O Graciliano revelado por Lêdo é stalinista empedernido e pai enternecido, racista impenitente e amante fiel ao vernáculo do qual tirava o pão de cada dia. O perfil vale por uma tese acadêmica sobre as manias e métodos de nosso Dostoievski de Palmeira dos Índios, na mesma Alagoas, capital Maceió, berço de Lêdo.
O parágrafo com que este encerra o perfil se assemelha àquele toque final de mestre que Rafael dava às telas de seus discípulos. Ali estão plenos o mestre pintado e o mestre pintor. Vale a pena reproduzi-lo: “Je me crois en enfer, donc j’y suis. Graciliano Ramos julgava estar vivendo no inferno – o inferno de um cotidiano que só a morte haveria de dissolver. Mas, quando esta o cercou, ele chorava muitas vezes, em seu quarto de doente. Diante dessas lágrimas, seria talvez o caso de citar a frase célebre daquele ‘negro metido a inglês’ chamado Machado de Assis sobre o homem que, morrendo, ainda sonha com a vida: ‘Nem ele a odiou tanto, senão porque a amava muito’”. E cai o pano.
Vicente do Rego Monteiro, Rachel de Queiroz, Cornélio Penna, José Lins do Rego, Augusto Frederico Schmidt, Clarice Lispector, Josué Montello são protagonistas das Aparições de Lêdo. Assim como Breno Accioly, cujo enterro mereceu um poema em prosa pungente e cruel, talvez até mais cruel do que cruéis foram as pinceladas com que o autor pintou o romancista de Angústia e as tiradas impiedosas que ele retirou de sua entrevista com o crítico Agripino Grieco, fazendo deste uma espécie de ombudsman permanente que muita falta faz à literatura “água de batata” que atualmente se produz por aqui.
Assim inicia o relato: “No instante em que deveríamos segurar as alças do caixão em que jazia o corpo de Breno Accioly, descobrimos, talvez com espanto, que éramos apenas quatro: João Condé, Valdemar Cavalcanti, Tadeu Rocha e eu. E seis mãos eram necessárias para carregar os despojos do autor de João Urso até o gavetão que o esperava, no alto do cemitério. Dois coveiros se apresentaram, disfarçando em algumas palavras de gentileza funerária o constrangimento que se abatia sobre aquela cena de enterro, no quase meio-dia cheio de sol. As duas mãos anônimas se estenderam para as alças livres, e assim Breno Accioly pôde ser sepultado. Atrás de nós vinha uma gorda e humilde sombra feminina”.
Puxa vida, é ou não é de interromper a respiração, assim como García Márquez achava que um texto de ficção tinha de ser? O mesmo vale para a poesia. Para seguir este texto, talvez convenha ir até o fim do livro e de lá capturar o manso poema sobre o anonimato da morte: “Tomaram seu corpo jovem e o sepultaram na terra nativa / mas os tempos se passaram e ficou esquecido / o lugar em que a enterraram. // Como a paisagem era azul em excesso / plantaram canaviais até perto do mar. / Ninguém se lembra mais da moça morta”.
Não imagine o leitor que o livro é tétrico como esta resenha pode fazer crer. A morte nele aparece como consequência da vida colorida do mar de Maceió, onde o autor nasceu, e do Rio de Janeiro, onde ele vive. Em reverência ao estilo do comentado e ao prazer da leitura que ele resgatou neste livro de culto à flor do Lácio, será o caso de encerrá-lo com a sentença final de “Rumo ao farol”, que o abre e instaura: “Em meu longo caminhar, estou sempre caminhando em direção ao farol que me espera no alto da colina”. Lê-lo é isso: cumprir esta jornada peripatética sem medo e com gosto.