Elis, a mais perfeita tradução do pop do sertão de Belchior

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest
Pocket
WhatsApp

José Nêumanne

Os violétricos. Este neologismo, síntese de memória e inovação, era um signo de nossa proposta, que ligava polos opostos, mesclando respeito e provocação. Belchior e eu planejávamos escrever um tratado sobre a fusão de viola de feira com guitarra elétrica. A obra não foi escrita e a palavra se perdeu, mas a geração teve sorte e fez sucesso: Fagner, Zé Ramalho, Mirabô, Alceu, Geraldinho, Marcus Vinicius, Pessoal do Ceará e outros autores retirantes. Com eles, as cantoras Elba e Amelinha.

Belchior morava na obra da casa de Irede Cardoso, minha colega no jornal e, depois, vereadora e militante feminista. Sem dinheiro para refeição e transporte, ia todo dia do Cemitério do Araçá, no Sumaré, até meu apartamento na Rua Caio Prado, na Consolação. Comíamos feijão de corda, preparado com esmero por Maria de Marinheiro: era a madeleine de Proust dele e o fazia voltar a sua Sobral natal. Ali, planejávamos o ensaio que não foi escrito.

Outro colega, Walter Silva Picapau, providenciou encontros que possibilitariam ao cearense realizar seu sonho de juventude. Levou-o para o programa Mixturação, no Teatro Record da rua Augusta, produzido pelo crítico que fora disque-jóquei. No palco cruzou com Raul Seixas, Simone, Ney Matogrosso e os Secos e Molhados. E ali reencontrou Fagner, o Pessoal do Ceará e Pekin. Walter apostava nos boleros deste último, mas ele nunca fez sucesso, voltou pro Ceará e sumiu. Alguns ascenderam ao estrelato, caso de Fagner e Belchior, que compuseram juntos Mucuripe, clássico registrado por Roberto Carlos, depois de Elis Regina.

No programa, ele também cruzou com o poeta, maestro, compositor e musicólogo Marcus Vinicius de Andrade, sob cuja direção musical produziu seu primeiro LP, por escolha do Picapau, que dirigia uma linha de jovens compositores e intérpretes pra Continental, de Alberto Byington. No apartamento de Marcus na Frei Caneca os dois engendraram seu disco de estreia. O resultado foi primoroso, mas não fez o sucesso comercial que merecia. Marcus introduziu no projeto de fusão pop-popular do artista o legado de George Martin com os Beatles.

O disco seguinte, Alucinação, feito no estúdio da Polygram, na Barra da Tijuca, foi uma espécie de grandes sucessos avant la lettre. Ali foram gravadas algumas das melhores canções de sua lavra. Duas – Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida – foram interpretadas de tal forma por Elis, com arranjos de César, que garantiram o sucesso enorme do show e do álbum Falso Brilhante, obra prima da dupla Elis e César. E incrementaram as vendas do próprio lançamento, agora quarentão.

Belchior virou um artista popular para o povão, o rei do circuito de churrascarias na periferia. E a maior cantora brasileira desde sempre o entronizou num alto altar no panteão da tal da Música Popular Brasileira. A Pimentinha de Porto Alegre e o pianista paulistano conseguiram de maneira mágica fazer o casamento perfeito entre a mistura de música e da poesia de repente do sertão com os sons da arte que consagrou Lennon e McCartney, Richards e Jagger. É difícil hoje saber se Belchior tem noção de que o sonho do compositor que amava mais a poesia, iniciado com Hora do Almoço, citada por seu inimigo de adolescência Fagner na gravação de Canteiros, foi realizado em tal plenitude que o melhor de sua obra inteira está no CD do show Falso Brilhante.

Qual falso, o quê? É o som sem jaça de violétrico no auge da perfeição.

Jornalista, poeta e escritor

Caderno 2 do Estadão, domingo, 8 de maio de 2016.

http://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/o-pop-do-sertao-de-belchior/

Facebook
X
LinkedIn
Pinterest
Telegram
WhatsApp

Nunca perca nenhuma notícia importante. Assine a nossa newsletter.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

José Nêumanne Pinto

Blog

Jornal Eldorado

Últimas Notícias

Últimas Notícias