61 milhões de votos não põem Lula acima da democracia
Uma euforia cívica tomou conta do Brasil na semana passada, quando, por unanimidade, os dez membros do Supremo Tribunal Federal (STF) abriram processo por corrupção ativa contra – e apenas um deles não enquadrou por formação de quadrilha – o ex-ministro José Dirceu e mais 39 acusados de comprar a adesão de parlamentares aliados para projetos de interesse do governo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva avisou logo que ninguém foi inocentado… nem inculpado. O truísmo presidencial certamente será insuficiente para retirar do julgamento a importância histórica e o incômodo que trouxe para seu governo e o partido em que milita. Mas também serve para alertar que esta decisão não é suficiente para dar um “basta” definitivo à impunidade reinante no País e enraizada na história, nos hábitos e nos costumes da sociedade – nem à permanência nociva dela nas engrenagens do Estado.
Sim: a histórica goleada que o goleiro Lula não quer admitir ter sofrido resolveu um jogo, empregando aqui uma metáfora tão de seu gosto pessoal, mas não decidiu o campeonato da impunidade. Ele próprio, contudo, pode ter-nos dado, sem querer, o caminho para desvendar e esclarecer a verdadeira importância daqueles votos que fizeram história. O observador desapaixonado terá dificuldade de entender por que o presidente não aproveitou a oportunosa ensancha para lembrar que a corajosa peça de acusação encaminhada ao STF foi da lavra de um servidor por ele nomeado e reconduzido ao cargo, Antônio Fernando de Souza, o procurador-geral da República. O relatório que acolheu a denúncia e encaminhou a votação também foi produzido por um ministro, Joaquim Barbosa, nomeado pelas mesmas mãos que conduziram ao plenário da cúpula do Poder Judiciário a maioria mais um de seus membros, seis em dez. Isso pode até ser debitado na conta do desgosto que lhe devem ter causado os votos dos ministros que indicou e que foram, como sempre, pressurosamente referendados nas sabatinas do Senado. Mas é mais provável que a lembrança lhe tenha faltado por desconhecimento de causa.
Talvez Sua Excelência não tenha percebido que a “vitaliciedade” (palavra desembarcada na linguagem corrente por culpa da sinecura confirmada pelo Órgão Especial do Ministério Público Estadual paulista ao promotor Thales Ferri Schoedl, que matou Diego Mondanez) é gêmea da independência. O general Charles de Gaulle dizia que a ingratidão é uma das maiores virtudes de que deve ser dotado um estadista. Talvez nosso presidente não conheça a sentença, mas tem uma biografia cheia de episódios que confirmam ser esta uma das qualidades que mais utilizou na escalada de uma diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo até o principal gabinete do Palácio do Planalto. Quem põe alguém numa cadeira que ele pensa ser maior que o ocupante deve estar sempre preparado para a possibilidade de o lugar exigir que ele cresça para ocupá-lo. Provavelmente o presidente da República e os 40 réus do “mensalão” não se tenham dado conta disso. Mas tudo indica que os membros do Supremo perceberam com clareza que a História lhes estava dando a oportunidade de ignorar o investidor para ficar no tamanho da investidura.
A ministra Ellen Gracie pôs indiretamente estas cartas na mesa quando lembrou, no encerramento da votação, que presidiu com brilho, que a história do STF o credencia perante a Nação por um “desempenho notável” no decorrer do tempo. No pronunciamento final dela e nos apartes de apoio que recebeu dos colegas Celso de Mello e Carlos Britto, ficou patente este compromisso do plenário do Supremo com a própria instituição, acusada de histórica leniência em relação à impunidade vigente – principalmente no que concerne ao julgamento de ilícitos de que têm sido acusados parlamentares e altos executivos federais aquinhoados com o foro privilegiado. Este zelo em relação à imagem da cúpula do Poder Judiciário, que o Senado não tem demonstrado no caso Renan e o Conselho Nacional do MP demonstrou honrar, ao corrigir a desastrada decisão corporativista do Órgão Especial do MP Estadual paulista, pode não bastar para garantir a punição exemplar para quem de fato delinqüiu no processo em debate. Mas pelo menos sinalizou que, mesmo tendo o acaso aquinhoado as duas atuais gestões com a nomeação de mais da metade de seus membros, o Supremo não fará vista grossa à marcha insensata que os maiorais petistas resolveram empreender contra a higidez das instituições democráticas vigentes. A popularidade de Lula não o põe acima delas.
Com a proverbial empáfia petista, o presidente fez o contrário do que fizeram os ministros do Supremo que nomeou e se apequenou apeando do trono presidencial onde o povo o pôs para exercer o papel, que não lhe é dado pela ordem constituída, de “perdoador-geral da república do PT”. Num encontro partidário, tomado pela certeza de que os 61 milhões de sufrágios que recebeu no ano passado o tornam portador do dom de ungir seus favoritos com o halo da santidade, mesmo quando eles cometem os mais graves pecados, Sua Excelência se deu ao desplante de dizer aos correligionários que não se deveriam envergonhar de seus companheiros processados pelo Supremo, mas se solidarizar com eles. Ungida pelo pai-patrão, o companheirada assumiu a vanguarda da marcha que tenta solapar as instituições, propondo absurdos, como a reestatização da Vale, e piadas de péssimo gosto, como a criação de um Conselho de Ética, sem que um só de seus ex-dirigentes e militantes tornados réus por corrupção e formação de quadrilha tenha sido sequer censurado. O passo do STF foi enorme e dado na direção e na hora certas, mas longa ainda é a caminhada para salvar as instituições do desmanche.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 5 de setembro de 2007, p. A2, Opinião