O governo se acha o dono do poder e quer calar as vozes que discordam dele
Desde que o Partido dos Trabalhadores ocupou, de maneira nada sutil, aliás, a máquina pública federal, têm sido feitas, de forma preocupante, tentativas de controle de uma velha e fundamental conquista do Estado democrático de Direito: o direito à informação livre e à opinião plural. Depois dos abortos do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav), ainda na primeira gestão, e anabolizados pela reeleição consagradora do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o segundo mandato foi inaugurado com o anúncio da implantação de uma rede pública de rádio e televisão e a idéia do controle da “mídia” em períodos eleitorais. A missão de criar alternativas à chamada “imprensa burguesa” foi dada inicialmente à chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, com o efeito colateral de esvaziar a gestão de Eugênio Bucci na Radiobrás, realmente comprometido com a natureza “pública” das emissoras oficiais. Depois, essa idéia foi substituída pelo anúncio de investimentos milionários numa rede sobreposta às já existentes da citada Radiobrás e das emissoras educativas, culminando com a posse do jornalista Franklin Martins no ministério que comandará a operação.
As declarações que Sua Excelência deu aos jornais e ao programa Roda Viva na TV Cultura semana passada são coerentes com seu passado de militante da chamada Dissidência Comunista da Guanabara, que teve a ousadia de planejar, realizar e glamurizar com manifestos políticos divulgados nos jornais o seqüestro do embaixador dos EUA no Brasil à época, Charles Elbrick. Filho de um político da esquerda tradicional, o senador fluminense Mário Martins, o ministro se tornou conhecido no período depois da queda da ditadura militar, que combateu, como um executivo que fez carreira nas Organizações Globo, no jornal e depois nas emissoras de TV aberta e a cabo, que não podem ser definidas como “socialistas”. Demitido após se terem tornado públicas relações trabalhistas entre parentes próximos e a máquina pública federal, abrigou-se por pouco tempo na concorrente Rede Bandeirantes, apoiando discretamente, tanto quanto possível, a linha dos petistas no comando da União. Ainda assim, surpreendeu ao aceitar o posto oferecido pelo presidente, pois assim demonstrou não ter intenção nenhuma de desmentir quem denunciou ser ele cúmplice nos comentários que fazia nos telejornais do governo ao qual passou a servir em função de destaque.
Deixando de lado essas considerações e o espanto com que foi recebida sua declaração de que teria tomado conhecimento antecipado de condenação judicial de um denunciante e desafeto, importa entender nas entrelinhas do que ele disse a lógica da missão que lhe foi confiada pelo presidente. Aos entrevistadores do Roda Viva, por exemplo, disse ter sido um combatente da democracia. Na verdade, ele lutou contra a ditadura de direita, mas para substituí-la por outra de esquerda e, ao se permitir tal falácia, não é original: muitos já o fizeram e está aí José Dirceu que, neste capítulo de pretenso herói na luta pelas liberdades, salve, salve, não deixa ninguém mentir em vão.
Não há aqui, contudo, interesse em detratá-lo, mas em compreender sua lógica. O ex-seqüestrador não é um inimigo da democracia, latu sensu. É, sim, um devoto da democracia dita popular, teorizada por Lenin, Rosa Luxemburgo e outros comunistas de primeira hora e levada a extremos por tiranos sanguinários como os mortos Stalin, Mao e Ceaucescu e os ainda vivos, como Fidel Castro. Para esses marxistas-leninistas, a democracia burguesa não passa de uma farsa das elites capitalistas para dar aparências amenas à exploração do proletariado. Portanto, quando Franklin se diz um democrata, ele não está falsificando a verdade, mas usando um sentido que nega a essência da palavra, que vem do grego e significa governo do povo, mas mantém a ilusão publicitária, tão cara à propaganda missionária e à feira de ilusões da política de massas. Desmamado e criado nos dogmas marxistas, o ministro não é um cínico falsificador, mas um ortodoxo pregador. A “democracia burguesa”, para os de sua grei é que seria uma farsa. E como tal ele e seus companheiros não têm nenhum pudor de usar seus métodos para alcançar o topo do poder e de lá construir as “condições objetivas” para o verdadeiro assalto ao Palácio de Inverno, mesmo sem neve nestes trópicos. A discordância fundamental entre ele e o colega Eugênio Bucci em torno do real sentido da palavra “pública” vem da mesma cartilha: para os devotos de Lenin, o partido é a vanguarda do operariado e, portanto, fica acima dos interesses e das idiossincrasias das classes sociais que historicametne o oprimem. “É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”, como cantava o “companheiro” Vandré.
A sugestão do presidente nacional do PT, Ricardo Berzoini (SP), é de natureza bastante diferente. Militante oriundo do sindicato, este propõe que a “mídia” seja controlada em períodos eleitorais, não por convicções socialistas, mas por pragmatismo puro. Se os meios de comunicação não tivessem noticiado o envolvimento de seus subordinados na cúpula do PT federal no pagamento aos falsários que engendraram um dossiê contra os adversários tucanos, ele teria poupado alguns dissabores e arranhões em sua biografia. Que, aliás, não o impediram de se reeleger deputado federal e presidente nacional da sigla.
Mas não importa a diferença entre o elevado senso de missão de um e a familiaridade do outro com gente que falsifica dossiês. O que se busca em ambos estes surtos de autoritarismo é calar as vozes dissidentes e garantir o exercício do poder por um grupo de políticos que se consideram monopolistas da vontade do povo: enterrar a “democracia burguesa” em nome da “democracia popular”.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 02 de maio de 2007, p. A2