Lula unificou os grotões e Serra pretendeu o impossível: chegar sozinho à Presidência
João Santana, o Patinhas, letrista de Gereba e Capenga, do Grupo Bendegó, banda cujo nome celebra o meteorito caído no sertão da Bahia em 1784, virou “o” marqueteiro dos presidentes desde que comandou a propaganda dos triunfos eleitorais de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006, de Maurício Furnes em El Salvador, em 2009, e agora de Dilma Rousseff. Pelo que revelou em entrevista exclusiva a Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo, saiu da campanha de 2010 grato aos adversários em geral, e aos tucanos em particular, a cuja alienação atribuiu, em parte, o triunfo da candidata oficial. Terá ele razão?
Um pouco, sim. Mas talvez a tivesse mais ainda se se referisse especificamente à reeleição do presidente há quatro anos, e não ao pleito deste ano. Em 2006, o escândalo do “mensalão” levou o PSDB e o PFL à ilusão de que, fosse quem fosse, seu candidato venceria Lula, politicamente debilitado pela denúncia de Roberto Jefferson de ter comprado apoio parlamentar. O ex-prefeito de São Paulo José Serra e seu correligionário Geraldo Alckmin, à época no governo do Estado, se enfrentaram num cabo de guerra feroz para ver quem seria escolhido pelo partido para derrotar Lula. Consta que, quando foi sugerido ao chefão do então PFL, Antônio Carlos Magalhães. que propusesse o impedimento do presidente, ele desdenhou: “Que nada! Vamos deixar o porco sangrar até a eleição e torrá-lo nas urnas.” Os tucanos omitiram-se ao não punir seu presidente nacional de então, Eduardo Azeredo, acusado de ser o “pai” do “mensalão” em Minas Gerais. E tiveram de se contentar, como ocorreu nos últimos pleitos, com o Palácio dos Bandeirantes, deixando o Planalto em comodato para o Lula de sempre e a “companheirada” de fé.
Em 2010, a história foi outra e, se Patinhas a conhece, não quis contá-la inteira. Desde que assumiu o segundo mandato, o presidente dedicou-se à tarefa de eleger o sucessor, já que preferiu esta hipótese ao desgaste a que poderia ficar exposto se tentasse emendar a Constituição para disputar ele próprio mais uma reeleição. O ex-dirigente metalúrgico teve paciência de relojoeiro e tino de mercador fenício na tessitura de seu projeto de permanência no poder.
Começou a construção pelo alicerce – do jeito que lhe ensinaram os mais velhos, entre eles um sábio adversário, Tancredo Neves. O dr. Tancredo dizia que ninguém chega à Presidência da República sem unir seu Estado. Lula radicalizou o ensinamento e resolveu unificar todos os grotões, conquistando a adesão das lideranças locais. Sim, é verdade que ele tornou o Bolsa-Família um formidável cabo eleitoral e também contou com o vento a favor de uma popularidade que atingiu os píncaros de 83% na época da eleição. Mas não ficou esperando que apenas isso alavancasse o soerguimento de seu “poste”, que sempre foi pesado – e ele sabia. Dilma não é petista histórica, tem carisma zero e um talento de comunicadora inversamente proporcional ao do padrinho. Por isso ele costurou alianças indissolúveis com as lideranças municipais, deputados estaduais e federais, senadores e governadores. Mal a campanha começou, sua candidata já tinha a vitória assegurada.
Pode-se dizer que para tanto ele vendeu a alma (dela) ao diabo. Compôs com o que há de pior em nossa rasteira politicagem regional, aliou-se a inimigos figadais do PT ideológico de antanho e não descuidou de nenhum detalhe. A avalanche de milhões de votos registrados nas urnas eletrônicas do sertão nordestino resultou de um trabalho que incluiu a cassação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de dois governadores oposicionistas – Cássio Cunha Lima (PSDB), da Paraíba, e Jackson Lago (PDT), do Maranhão. Quem festejou com isso a restauração da moralidade no pleito se esqueceu de que Marcelo Déda (PT), de Sergipe, escapou de processo similar e se reelegeu no primeiro turno. Restou Teotônio Vilela (PSDB), em Alagoas, mas, como é notório, este Estado é feudo do governista Renan Calheiros (PMDB). E foi assim que não houve palanques no Nordeste para a oposição e a candidata governista nem teve de se expor às intempéries da soleira sertaneja, porque os aliados a representaram à altura. Na Paraíba, por exemplo, os dois candidatos com chances, Ricardo Coutinho (PSB), o vencedor, e José Maranhão (PMDB), o governador, fizeram a campanha por ela.
Assim como em 2006 Alckmin imaginou que anularia a máquina pública com o decrépito discurso moralista da UDN, Serra, em 2010, enredou-se nas próprias fantasias vãs. O Patinhas baiano descreveu, na entrevista citada acima, como a oposição imaginou que a candidata governista, inexperiente e tatibitate, afundaria nos debates. Na campanha real, os debates tornaram-se inúteis pelo esvaziamento do interesse neles, provocado pelos próprios marqueteiros dos candidatos, que os cercam de proibições esterilizantes. Mas, ainda que valessem, qual teria sido mesmo o debate em que Serra esmagou Dilma sob sua “poderosa” argumentação?
Lula nunca teve escrúpulos muito em conta e na campanha recente os enfiou numa gaveta fora do alcance de quem quer que fosse. Desrespeitou a mesma Justiça Eleitoral que asfaltou as veredas de sua candidata nos grotões, fazendo pouco da lei e zombando de eventuais e esquálidas punições. Desprezou os princípios do Estado Democrático de Direito relativos ao bom proveito do rodízio no poder ou ainda à igualdade de oportunidades na disputa. Só que também o adversário-mor lhe deu uma boa mãozinha. Serra pretendia chegar à Presidência sem dever favores a ninguém, mostrando que não aprendeu com seu fiasco anterior, as derrotas de Lula e o impedimento de Collor que é quase impossível vencer sozinho. E quem ganha não governa.
A revelação dos podres da grande família de Erenice Guerra no palácio só adiou, não evitou a vitória de Lula-Dilma, conforme Patinhas, leitor de pesquisas. Prevaleceu a barganha original sobre o escândalo ocasional.