Quando convém, Lula chama a toga, mas quando não convém, a enxota
Bia, personagem de Maria Adelaide Amaral que Denise Fraga defende com brilho na minissérie Queridos amigos, da Globo, diria que um Netuno contumaz se interpõe entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o espelho. Sua Excelência é um político de extraordinário talento: nunca antes na História deste país, um presidente ultrapassou o primeiro ano do segundo mandato com quase 70% de aprovação popular e a certeza indomável de que nada que vem de baixo o atinge. Não se deixou abater quando seu lugar-tenente foi derrubado pelo escândalo da compra de base de apoio no Congresso; o czar da economia preparado para sucedê-lo foi pilhado xeretando o sigilo bancário do pobre caseiro; e a ministra da Igualdade Racial usou dinheiro público para pagar compras no free shop. Todos voaram e ele permanece, impávido colosso, no ninho, sem se dar por achado: nunca soube, nunca viu, nunca ouviu. E, quando teve de demitir, demitiu, sem deixar de afagar o demitido na despedida.
Nunca antes na biografia de nosso guia social dos flagelados da seca e dos favelados da urbe, contudo, houve um caso como o tal programa Territórios da Cidadania. O governo federal fez um pacote de R$ 11 bilhões e o entregou ao ministro da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, para distribuir entre as prefeituras num ano de eleições municipais. Aí, qualquer coincidência é mera coincidência! É claro que a oposição, cujos candidatos nos municípios relevantes serão naturalmente confrontados com as campanhas milionárias dos adversários ligados aos partidos do governo, o PT principalmente, reclamou. Apontou para o óbvio lulante (assim sem u, mesmo, porque tem mais que ver com Lula que com Nelson Rodrigues) de mais um programa com dinheiro público a ser distribuído às vésperas da eleição e resolveu partir para a briga. Cassel, mais lulante que óbvio, disse que é claro que o programa nada tem que ver com o dito cujo pleito, uma vez que foi planejado no ano passado e a disputa pelas prefeituras será neste ano. Genial! Quer dizer, então, que ninguém no governo nem no Congresso tinha conhecimento nenhum do calendário eleitoral? Comovente!
Mas ninguém é mais lulante que Lula e este, é claro, deixou sua marca na polêmica. Direto de Quixadá, no interior do Ceará, uma das escalas de sua turnê para comemorar os altos índices de popularidade e implantar os tais Territórios da Cidadania, ele disse que a oposição não o deixa governar. Lulinha, quem diria, o aguerrido comandante da mais competente oposição política de que há notícia nesta República, em vez de comemorar a oposição pífia e inócua que lhe movem tucanos e dêmicos, se queixou dela. E errou, é claro: se não governa, é porque viaja. Se parasse algum dia da semana em Brasília e recebesse uma meia dúzia de ministros para despacho no Palácio, com certeza trabalharia mais, mesmo sendo a capital federal um horror e uma maravilha subir e descer de palanques pelo resto do País.
O queixume de Quixadá, contudo, em nada se compara ao xabu de Aracaju. Na capital de Sergipe, o presidente da República disparou contra o presidente do Tribunal Superior Eleitoral e só não abriu uma grave crise institucional porque já se convencionou no Brasil que é mais seguro não levar completamente em conta o que o chefe da Nação fala. E como fala! Alguns juristas renomados, consultados pelo jornal, disseram que o dr. Marco Aurélio Mello fala muito e diz o que não deve. Na sociedade da notícia-show, pergunta-se demais a todos, também aos juízes. E o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do órgão máximo da renomada e respeitada Justiça Eleitoral no País não é propriamente infenso ao brilho dos holofotes. Mas, justiça seja feita, o dr. Mello foi questionado e respondeu. Decerto poderia não ter respondido, mas também não falou nada de ofensivo, nada que ferisse o decoro ou a lei. Disse que, se o assunto fosse levado à Corte, a Corte o julgaria. Eis um evidente óbvio ululante, com todos os “us” possíveis. Lida com isenção, a frase do juiz poderia significar algo como: “O que seria do azul se não fosse o amarelo?”
Mas Lula não gostou. E, em Aracaju, disse, com aquele estilo veemente que tanto aprecia: “Seria tão bom se o Poder Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas deles, o Legislativo apenas nas coisas deles e o Executivo apenas nas coisas deles.” De fato, seria ótimo! Por exemplo: legislar é com o Legislativo, a menos que se promova uma reforma gramatical que mude o sentido da palavra, mas tem sido um verbo que na voz ativa e na primeira pessoa só tem sido conjugado no Brasil pelo Executivo, que deveria executar. O velho Montesquieu, que defendeu esse sistema de poder tripartite, que só pode funcionar quando os Três Poderes são autônomos e soberanos, diria que cabe ao Judiciário julgar todos, portanto meter o bedelho em tudo. Certo? Não para Lula. Quando convém, nosso guia recorre a Montesquieu. No caso da Igreja Universal do Reino de Deus contra a Folha de S. Paulo, ele vaticinou, rápido e rasteiro: “Quem escreve o que quer escuta o que não quer.” Eis o típico óbvio lulante para definir liberdade de imprensa. Mas, quando convém o contrário, o contrário ele diz. Faz parte do óbvio lulante a afirmação de que no Brasil só político tem o direito de meter o bedelho em tudo. Marco Aurélio Mello, se quiser, disse o presidente, que dispa a toga e peça voto.
Alguns louvarão o ânimo democrático de Lula, que, no auge do poder e da glória, apela ao eleitor para tentar impedir que o Judiciário dê guarida a políticos que discordam dos caprichos e interesses do chefe supremo. Mas o cheiro da brilhantina não agrada: as piores tiranias nasceram das maiores ovações, não de protestos irados dos rebeldes. Enquanto a oposição, mesmo tíbia, espernear e a Justiça não se ajoelhar à pretensão de ser infalível do líder, haverá uma réstia de esperança.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 05 de março de 2008, p. A2, Opinião
Do queixume de Quixadá ao xabu de Aracaju
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