Dom Paulo, Sobel, Wright e Audálio derrubaram a ditadura rezando por Herzog na Sé
Ouvi a notícia no rádio do carro pela doce voz de Alessandra Romano. A primeira reação foi de espanto. Então, dom Paulo era mesmo mortal como nós? Logo em seguida, fui assaltado por uma imensa frustração. Meu herói se foi. Nunca mais vou ter a oportunidade de lhe dar o abraço que nunca compartilhamos, sorver o café à mesa comum, que deveríamos ter tomado, conversar sobre a intolerância vigente, que ameaça tornar o Brasil um território em guerra permanente contra a honra, a ética e a tolerância. Pois, então: cheguei a São Paulo em 1970, à época em que ele assumiu a arquidiocese mais populosa do País. Nunca tivemos proximidade nenhuma, ao contrário de muitos jornalistas que o acompanhavam de perto, rotineiramente. Convivi com alguns deles: primeiro, na Folha, com JB Natali Júnior; depois, no Jornal do Brasil, com Maria Inês Caravaggi; e, também, numa conferência da CNBB, em Itaici, com Ricardo Rodrigues de Carvalho, que deu em mim um furo memorável, daqueles de acabar com a exagerada autoestima de qualquer repórter precoce. Neste momento, presto também minha homenagem a Evaldo Dantas Ferreira, o Tião Medonho, que dirigia O São Paulo, jornal da Cúria Metropolitana e, nesta condição, representou o arcebispo na negociação para obter uma reportagem sobre os instrumentos de tortura no DOI-Codi da rua Tutoia, aproveitando valiosas informações do valoroso comunista Marco Antônio Tavares Coelho, publicadas na Folha por Boris Casoy e no Jornal do Brasilpor JB Lemos e por mim. Quem viveu aqueles tempos sabe da dor e da agonia que vivíamos para não nos alvitarmos. Estes colegas, assim como Ricardo Kotscho, tiveram a honra de tê-lo como amigo, chegando até à intimidade com o dignitário católico que se orgulhava de seu amor por Deus, sua paixão pelo Corinthians e sua condição de amigo do povo, mais até que de pastor.
Eu fui apenas um admirador à distância. Conheci sua coragem e sua mansidão nos anos brutais da ditadura.
Testemunhei e participei da cobertura do acontecimento histórico mais importante da democracia na República brasileira: o culto ecumênico que ele celebrou na Sé ao lado de um rabino e de um pastor presbiteriano em memória do colega Vladimir Herzog, assassinado nas masmorras da ditadura. Aquele foi o momento crucial da resistência civil, o primeiro grande ato de independência de um povo tratado como gado e que, enfim, tinha resolvido se libertar. A ditadura militar de 1964, recrudescida na virada dos anos 60 para os 70, enganava o povo com a ilusão do milagre econômico, enquanto massacrava os grupos de jovens de extrema esquerda sob tortura no pau de arara, a rajadas de metralhadoras em quartéis e delegacias clandestinas, em tiroteios forjados nas ruas ou por sufocamento, como aconteceu com Herzog. Mas era uma guerra suja contra radicais do lado oposto e esse argumento canalha mantinha imóvel a maioria silenciosa, entorpecida e apavorada. Vladimir Herzog, contudo, não era um jovem radical treinado em escaramuças de guerrilha em Cuba, mas um pai de família de meia idade prestes a aderir aos cânones do velho Partidão Comunista, o Pecebão, da linha soviética, e que dirigia o Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo. Foi caçado para criar embaraços para o possível sucessor civil do general Geisel, o favorito da chamada Sorbonne, como era conhecida a Escola Superior de Guerra. E foi preso para comprometer o chefe, José Mindlin, que era secretário de Cultura, e o superior hierárquico deste, Paulo Egydio Martins, governador de São Paulo e escolhido pelo general para concretizar a abertura lenta e gradual da ditadura rumo à redemocratização do País. Os torturadores cometeram um “acidente de trabalho” e Vlado morreu. Naquele momento difícil, quatro homens se destacaram: o arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo, cardeal Arns, da ordem franciscana e catarinense; o pastor presbiteriano James Edson Wright, paranaense de Curitiba; o rabino Henry Isaac Sobel, norte-americano nascido em Lisboa; e o jornalista alagoano Audálio Dantas. Dos quatro só esse repórter, que aprendi a admirar lendo suas histórias nas páginas da revista O Cruzeiro, ainda pode testemunhar o que aqui registro. Os três religiosos convocaram os fiéis para um culto ecumênico na Sé. As tropas fecharam os acessos à catedral gótica de São Paulo. Mas a multidão superlotou o templo e, à saída, o anfitrião, munido de apenas duas armas, a coragem e a mansidão, instruiu aos fiéis de todos os credos a não terem pressa, saírem devagar e não responderem a provocações. Ele foi o grande inspirador que se associou aos verdadeiros demolidores do regime autoritário, que combateram a guerra parlamentar: Ulysses Guimarães, Mário Covas, Tancredo Neves, Thales Ramalho, Paulo Brossard e muitos outros. Estes, sim, resistiram com civismo e não receberam medalhas de louvor nem nunca foram tratados como heróis da liberdade, embora o fossem. Agora que nosso bispo foi sem nosso abraço, sem nosso cafezinho, sem nosso papo em voz baixa, não posso mais lhe contar que nunca me esquecerei de sua imagem conduzindo o rebanho para fora da igreja monumental e para dentro da História. Ali o Brasil enterrou a longa noite das trevas e flertou com a liberdade. Sobel teve a ousadia de sepultar Herzog, tido como suicida, no campo santo fora do território dos judeus que tiraram a própria vida, desafiando a versão militar. E dom Paulo ficou sendo o meu herói do século, um espécie de Mahatma Gandhi americano de uma família de colonos alemães. Ele minou a ditadura sem disparar um tiro, sem abandonar a fé e a compaixão, sem nunca erguer a voz. Nunca contou lorotas nem vantagens. Morreu sem conhecer o sentido da palavra marketing, mas dominou plenamente a política que não precisa do conflito feroz entre desiguais para se assenhorear de um poder de ilusões. Dom Paulo faz falta neste momento em que os vendilhões da Pátria trocaram seu poder pela moeda torpe da propina. Mas algo me diz que ele saiu de cena para chamar a atenção para seu exemplo de pacificador nesta guerra sórdida por podres poderes.
O teólogo Fernando Altermeyer Júnior disse a Alessandra que Dom Paulo Evaristo, cardeal Arns, amava todos os que o procuravam. E sempre se despedia deles, amigos fiéis ou meros circunstantes, dando-lhe um violento tapa nas costas, admoestando: “Coragem, vamos em frente”.
É só isso que tenho a lhes dizer agora: coragem, vamos em frente!
*Jornalista, poeta e escritor
(Direto ao Assunto, Direto da Redação 3 da Rádio Estadão)
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