Dois fatos históricos relevantes me chamaram a atenção do fim de semana pra cá. Primeiramente, os deputados autorizaram, por 25 votos a mais do que os dois terços exigidos pela Constituição, a abertura de processo de impeachment contra Dilma Rousseff pelo Senado. O outro foi a ausência de vândalos nas manifestações contra ou a favor do impedimento.
Muita gente critica nas redes sociais e nos meios de comunicação o teor dos votos pelo sim ou pelo não com muitos apelos a Deus, à família, aos amigos e aos eleitores mais próximos. Ontem, à noite, participei com meu antigo colega na Folha de S.Paulo nos anos 70 e professor de Ciências Sociais da USP José Álvaro Moisés da abertura do programa Todo Seu, apresentado por Ronnie Von na TV Gazeta, em cujos telejornais faço comentários políticos em dois dias por semana. Sou amigo do Pequeno Príncipe há muitos anos e fico muito lisonjeado pelo fato de ele ter parado para refletir sobre o assunto, que serviu de tema para o editorial com que tradicionalmente abre seu programa diário. Ontem, ele fez coro a esse clamor geral, que tem produzido até listas gaiatas, e lamentou o baixo nível de quase todos os votantes naquela sessão histórica. Com todo o respeito que meu anfitrião televisivo merece, discrepo, como dizia mestre Antônio Houaiss. Pois acho que o Congresso deve reproduzir sempre da forma mais fiel possível a vontade da cidadania, que representa. Infelizmente, tenho dúvidas quanto à natureza da representação no voto proporcional à brasileira, em que a matemática das bancadas não corresponde ao tamanho do eleitorado. Acho que uma das mais importantes, e mais difíceis, reformas políticas a serem adotadas é o direito de cada cidadão ter direito a um voto, nem mais nem menos, em igualdade de condições com outro em qualquer Estado da Federação. A Constituição liberal de 1946 já traía esse conceito elementar da democracia representativa. A ditadura militar o agravou com o horrendo Pacote de Abril de 1977. E a Constituição de 1988 tornou o voto ainda mais desigual em matéria de representação. Enquanto não se muda, a discrepância existente entre as bancadas de Unidades da Federação mais ou menos populosas sempre produzirá riscos de votações que não correspondam fielmente à vontade política da sociedade. Então, sempre que ocorre essa fidelidade, eu a comemoro efusivamente. E estes foram os casos dos dois processos de impeachment, o de Collor, em 1992, e o de Dilma agora. Neste os deputados ouviram o clamor das ruas e atenderam a ele.
Para tanto foi necessário que muitos deles fizessem ouvidos de mercador aos cantos da sereia dos governistas, que lhes davam dinheiro e cargos em troca de ausências. Foi uma sessão histórica também porque teve recorde de comparecimento de deputados. Parabéns, pois, a todos eles!
Não há por que lamentar ainda o teor afetivo dos discursos, pois referências a familiares, amigos e outras pessoas mais próximas podem representar um salutar convívio com as chamadas bases. Esse convívio pode ter tornado mais fiel a tradução na votação do desejo manifestado em proporção bastante próxima do que se tem visto nas ruas.
Lamento que o deputado Jair Bolsonaro tenha exaltado, ao proferir o voto, a atuação do notório oficial torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, da mesma forma que houve quem ali lembrasse inimigos da liberdade do outro lado, como Lamarca e Marighela. É reprovável a cusparada do deputado pelo Rio que votou em seguida, Jean Willys, gesto repulsivo e mal educado, não recomendável em ocasião nenhuma, particularmente numa reunião histórica como foi aquela. No entanto, não nego a nenhum dos dois o direito líquido e certo de votar como votaram. Bolsonaro representa legitimamente na Câmara o segmento do eleitorado nacional que aprova os métodos brutais da ditadura militar contra os adversários da esquerda armada. Embora Willys tenha ultrapassado os limites da civilidade ao cuspir na direção do adversário, atingindo, então, os eleitores que votam no oponente.
Lamento ainda mais a narrativa escolhida pela presidente da República de insultar quem votou sim na noite de domingo, afirmando que quem optou pelo impachment o fez por um motivo torpe: a vingança do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Essa é uma ofensa que a democracia brasileira não merece e deslustra ainda mais a biografia da chefe do pior governo da História do Brasil, desde que Tomé de Souza desembarcou na Bahia.
Em compensação a essa truculência egocêntrica, burra, arrogante e surrealista, aproveito sua leitura para comemorar muito efusivamente a ordem e a harmonia reinante nas manifestações das ruas durante e depois da votação – o que, aliás, já fiz em comentário sobre o acontecimento ontem no Estadão no Ar daRádio Estadão (de segunda a sexta, às 7 horas, na sintonia da FM 92,9). Não houve depredações nem desforço físico num dia cívico inesquecível de clima quente, seja do ponto de vista da meteorologia, seja do convívio social. Dia em que, aliás, vimos a História acontecer diante de nossos olhos e debaixo de nossos pés. A ausência de vandalismo na festa dos vitoriosos e na lamentação dos vencidos é um indício de que o povo brasileiro está aprendendo a conviver com o contraditório democrático, mantendo-o com zelo e afugentando para longe as ameaças de atar mais fogo à estúpida guerra entre oponentes e as promessas de guerra contra a legítima decisão que o Senado vier a tomar sobre o momentoso processo – qualquer que seja.