Instituição secular dedicada a preservar a memória nacional de cultura, ciência e literatura homenageia com medalhas de mérito delinquentes que atentam contra liberdade de pensar e criar
“Filhos do sec‘lo das luzes! / Filhos da Grande Nação! / Quando ante Deus / Vos mostrardes, / Tereis um livro na mão: / O livro — esse audaz guerreiro / Que conquista o mundo inteiro / Sem nunca ter Waterloo… / Eolo de pensamentos, / Que abrira a gruta dos ventos / Donde a Igualdade voou!”.
Esta estrofe, simplesmente espetacular, foi escrita pelo maior poeta brasileiro de todos os tempos, Antônio Frederico de Castro Alves, pertence ao poema O Livro e a América, foi publicada na coletânea intitulada Espumas Flutuantes e eu me familiarizei com ela antes mesmo de ser alfabetizado. Minha mãe, Mundica Ferreira Pinto, dizia de cor nas noites quentes do sertão do Rio do Peixe a todos os seus filhos reunidos seus poemas preferidos. A doce lembrança de minha mãe, que perdemos há seis meses, me serviu de lenitivo à dor causada pelo impacto da noticia da lista dos beneméritos da bibliofilia na visão do atual desgoverno da causa familiar, convocados para receberem a medalha da Ordem do Mérito do Livro. O presidente da centenária instituição literária e cultural, Luiz Carlos Ramiro Jr., ao estilo bolsonarista de ser e não ler, misturou Jesus Cristo com Zé Buchudo, ou pior, Machado de Assis, o maior ficcionista brasileiro de todos os tempos, com o ex-PM do Rio e deputado federal Daniel Silveira, condenado pelo Supremo Tribunal Federal a oito anos e nove meses por atos antidemocráticos e no dia da publicação agraciado por indulto presidencial de discutível constitucionalidade. Não se sabe se por vergonha ou cinismo, o executivo não divulgou a lista dos agraciados, entre os quais conhecidos iletrados ágrafos como as deputadas Bia Kicis e Carla ]zambelli. Mas a simples menção do parlamentar, que foi filmado na rua em Copacabana instruindo seus ex-colegas de farda a dispararem contra a “caixa dos peitos” de pacíficos manifestantes antifascistas, motivou os raros merecedores da medalha a recusarem-na e faltarem à ominosa cerimônia na sexta-feira 1 de julho em defesa da democracia e do decoro.
No Twitter, um dos incluídos na lista para lhe dar o mínimo de credibilidade, o romancista Marco Lucchesi, autor da trilogia de romances O Dom do Crime, O Bibliotecário do Imperador e Pirandello no Rio, criticou a entrega da honraria a Silveira. E disse não ter condições de recebê-la. “Se eu aceitasse a medalha, seria referendar Bolsonaro, que disse preferir um clube ou estande de tiro a uma biblioteca”, afirmou o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Outro acadêmico que recusou a duvidosa oferta foi o poeta, tradutor e professor Antônio Carlos Secchin. “Quando aceitei a medalha, supunha que ela seria entregue a pessoas que, como no meu caso, tivessem vivência com a Biblioteca Nacional e com o universo do livro”, afirmou Secchin, com a autoridade de bibliófilo de escol. “Porém, pelo que soube há pouco, a cerimônia vespertina se constituirá na celebração de uma única diretriz política, agraciando pessoas sem relação com livros, biblioteca e cultura. Minhas más companhias eu mesmo me dou ao luxo de escolher”, cunhou ainda essa frase lapidar o poeta Secchin. Os bolsonaristas nem sequer têm o condão dessa liberdade de escolha e são obrigados a acolher os amigos do mal da imensa coleção particular do capetão sem noção.
E concluiu o professor aposentado de literatura na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de O Galo Gago : “não me sentiria bem vendo compartilhada a Medalha do Mérito de Livro a personalidades que provavelmente não veem no livro mérito nenhum”.
Como qualquer leitor de jornais e revistas está cansado de saber, o líder de vários dos premiados, da seita bolsonaristas do fascismo de Mussolini, detesta livros e adora pistolas. E, na certa, isso não condiz com o trajeto intelectual e a popularidade da grande historiadora carioca Mary Del Priore, que acaba de ocupar uma vaga na Academia Paulista de Letras. A autora de As Vidas de José Bonifácio registrou em seu perfil no Facebook um resumo dos escolhidos levados à recusa pela impossibilidade de escolherem os piores amigos disponíveis na praça suja: “Embora muito sensibilizada por ter sido agraciada com a Medalha de Honra ao Mérito do Livro, outorgada pela Biblioteca Nacional, prêmio que já foi dado a Carlos Drummond de Andrade e Gilberto Freyre entre outros, sou obrigada a recusá-lo, pois um dos agraciados é o senhor Daniel Silveira.”
O antropólogo e historiador baiano Antônio Risério, autor de Sinhás Pretas da Bahia, suas escravas, suas joias, noticiou a inclusão de seu nome na lista dos agraciados também no Facebook e na mesma rede mandou brasa: “A coisa vai mesmo de muito mal a ainda pior. Fiquei alegre e noticiei aqui que iria receber a medalha da Biblioteca Nacional – Ordem do Mérito do Livro. O motivo era até bem simples: ela já tinha sido conferida ao escritor-pensador pernambucano Gilberto Freyre. Mas agora, quando soube da corja que vai ser premiada, quero distância. Não tenho nada a ver com essa gente. Podem jogar a medalha no lixo.”
A presença dos bolsonaristas ofende os intelectuais relacionados e cospe numa tradição de 210 anos de uma instituição que merece respeito de todos, inclusive de quem proclama falso amor à Pátria.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no site Estação José Nêumanne Pinto no sábado 2 de julho de 2022:
domingo 3
Desgoverno despreza Biblioteca Nacional
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