Com esta oposição, Lula não precisa de aliado

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De gafe em gafe da oposição, o governo petista enche o papo de votos
Causou muita celeuma a lambança do líder do DEM no Senado, José Agripino Maia (RN), que facilitou enormemente a vida da chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, em seu depoimento na Comissão de Infra-Estrutura da Casa, ao lhe cobrar uma declaração que ela havia feito de que mentira sob tortura na ditadura. A hipótese lançada pelo senador na discussão – a de que a existência de um dossiê sobre os gastos do ex-presidente Fernando Henrique, seus familiares e auxiliares denunciaria a natureza ditatorial do governo petista na democracia – já era, para dizer o mínimo, frágil. O dossiê – admitindo-se sua existência e a função à qual fora destinado – poderia caracterizar uma chantagem, condenada até pelo código de ética da bandidagem. Mas dar a um eventual lance do jogo da política – por mais sujo que este fosse –, cujo objetivo funesto e condenável seria o de calar a oposição, com uma prática autoritária é um abuso de licenciosidade retórica tampouco elogiável.
O palpite infeliz do prócer oposicionista, contudo, certamente cairia no vazio de um depoimento longo, repetitivo, desinteressante e pouco objetivo, se ele não tivesse levado corda para casa de enforcado. Nem todo mundo se lembraria de que chantagem só há quando há com que chantagear. Ou seja, o governo evitaria as iniciativas punitivas da oposição aos gastos com cartões corporativos de seus membros se houvesse obtido informações desabonadoras sobre a mesma atividade no governo anterior. Isso em nada reduz a execrável sordidez da chantagem, mas, sem dúvida, diminui bastante a autoridade moral do chantageado. Pois quem tem rabo de palha corre de fogo e quem nada deve nada teme.
Mas o líder do DEM foi além e decidiu mexer em vespeiro. Após consultar a documentação que levou para o interrogatório da adversária, tida e havida como candidata preferencial do presidente à própria sucessão, imaginou que a poria em saia-justa com uma indagação aparentemente irrespondível: se ela tanto se jactava de falar a verdade, por que, então, teria admitido publicamente que mentira sob tortura? O humorista italiano Dino Segre, conhecido como Pitigrilli, cunhou sentença famosa segundo a qual qualquer de nós tem cinco minutos diários de imbecilidade. A diferença entre o gênio e os comuns é que, nestes cinco minutos, os gênios se calam. Agripino Maia, que não tem obrigação nenhuma de ser gênio, não se calou. Poderia ter, pelo menos, levado em conta o dito popular de que quem fala muito dá bom dia a cavalo e caiu na esparrela da própria insensibilidade. Pois a tortura é uma violação grave dos direitos humanos e Dilma foi violada em seus direitos fundamentais quando foi torturada no regime ao qual o senador serviu (foi nomeado prefeito de Natal) e não lhe foi conveniente lembrá-lo. Por menos adestrada que fosse para enfrentar embates políticos com os senadores, teoricamente mais preparados para tal, dificilmente ela deixaria passar em branco provocação tão bisonha desta “oposição Ricardinho”. A diferença fundamental entre a oposição política a Lula e o genial ex-levantador da seleção brasileira masculina de vôlei é que este costumava erguer a bola para os atacantes do próprio time. Oposicionistas como o líder do DEM erguem a bola ao corte do adversário. A “gerentona” do governo petista não perdeu a chance: chorou e respondeu que mentira para salvar a vida de companheiros e que na democracia, ao contrário, se fala sempre a verdade.
Tratou-se de um exagero semântico. Mente-se em qualquer regime e também na democracia, é claro. Sua Excelência mostrou ser excelente aprendiz do chefe, mestre na manipulação da emoção popular. Mas, embora ao depor não estivesse sob tortura nem na ditadura, a chefe da Casa Civil também não foi totalmente veraz ao posar de heroína do bom combate pela democracia. Sua luta na guerra suja nada tinha de boa: era contra uma ditadura de direita cruel, sanguinária e que torturava, mas para implantar outra ditadura de sinal oposto, mas nem por isso mais humana. Em nome do socialismo pelo qual ela pegou em armas, Stalin matou de inanição milhões de camponeses russos, Mao Tsé-tung massacrou multidões de chineses e poucas tiranias foram brutais como a do Khmer Vermelho, de Pol Pot, no Camboja. Isso não justifica a forma desumana com que ela foi maltratada e humilhada nos porões da ditadura, mas não a torna uma heroína da democracia.
Bom combate travou, por exemplo, o chefe do governo ao qual ela serve: Luiz Inácio Lula da Silva desafiou a ditadura com greves que desmoralizaram a legislação sindical com que esta tentava abafar a resistência democrática. Desabado sobre os próprios pés de barro, o regime militar foi substituído por esta democracia atual, na qual o presidente eleito por um partido de esquerda se aconselha com o ex-czar da economia da ditadura e adota como fiel aliado o ex-presidente do partido usado para fingir ser esta mais aberta do que, de fato, era. É neste panorama democrático que Agripino Maia, a antiga companheira Estela e o ex-líder das greves do ABC terçam argumentos para conquistar o voto do cidadão.
Já que o senador e a chefe da Casa Civil quiseram aparecer como inimigos jurados da mentira, seria bom que ambos levassem em conta a verdade dos fatos. E o presidente, que lançou Dilma para, de alguma forma, evitar que a oposição faça seu sucessor, para tanto conta mais é com a ajuda de líderes do DEM, como Agripino Maia, e do PSDB, como José Aníbal (SP), que, em vez de esclarecer a opinião pública sobre o real papel de companheira Estela na guerra suja, preferiu prestar-lhe vassalagem telefônica e alargar o fosso com o DEM, já aberto com a disputa da sucessão municipal em São Paulo. Com uma oposição destas, Lula não precisa de aliados para se manter no poder pelo tempo que quiser.

 

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2008, p. A2

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José Nêumanne Pinto

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