Audálio Dantas, 80 anos. No início do fim da ditadura

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Sua vitória no Sindicato dos Jornalistas foi um fator fundamental para que
a entidade reagisse à morte de Vlado Herzog

Em 8 de julho, Audálio Dantas fez 80 anos. Em 27 de junho, Vladimir Herzog teria completado 75 se não tivesse sido torturado até a morte nos porões da repressão, em 25 de outubro de 1975. Do encontro da biografia dos dois – o primeiro nascido em Tanque d’Arca, no sertão alagoano, e o outro, em Osijek, na Croácia, parte do Reino da Iugoslávia quando Vlado (no Brasil, o nome foi adaptado para o português) nasceu – ocorreu no momento em que a ditadura militar desabou sobre os próprios pés de barro. Entre o croata e o sertanejo criou-se, então, um vínculo histórico que foi além do fato de ambos terem feito brilhante carreira jornalística. Herzog foi o mártir cujo sangue derramado batizou a volta da democracia. Audálio, o homem certo no lugar certo para indicar o caminho a ser seguido nesse rumo.

Audálio Dantas

Parte da trajetória de Audálio, como se pode ler no texto acima, consta do livro Tempo de Reportagem, coletânea de seus melhores momentos de repórter. O maior destaque, claro, é a revelação em reportagem para a Folha de S.Paulo, em 1958, da catadora de papel Carolina de Jesus na Favela do Canindé, lançada para a glória literária com o sucesso de trechos de seu diário editados por ele, em 1960, no livro Quarto de Despejo. Foram coletadas reportagens de Audálio publicadas pela revista O Cruzeiro – caso da viagem, em 1963, a Canudos, na Bahia, cenário do clássico da literatura em português Os Sertões, de Euclides da Cunha. E registros selecionados do que ele escreveu, de 1970 a 1972, na revista Realidade – da saga de catadores de caranguejo no mangue à rotina dos pescadores do Velho Chico.

Nada disso pode, contudo, ser comparado ao passo que deu após ser escolhido para encabeçar a chapa para substituir a diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, que, sob a presidência de Adriano Campanhole, se mostrava pouco disposta a enfrentar o regime militar no começo dos anos 1970. Sua vitória foi fundamental para que a entidade reagisse com firmeza e serenidade à violência cometida contra um colega que nada tinha que ver com a guerra suja.

Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Herzog foi teatrólogo, professor da Faculdade de Comunicação da própria USP e fez carreira de destaque como jornalista, tendo trabalhado em vários veículos, entre os quais este O Estado de S. Paulo e a BBC de Londres, até ser nomeado diretor de jornalismo da TV Cultura. Em 24 de outubro de 1975, foi convocado por agentes do Exército a dar esclarecimentos no DOI-Codi da Rua Tutoia. Apresentou-se no dia seguinte e de lá só saiu morto – sua foto, mostrando-o como que enforcado no próprio cinto, ganhou notoriedade.

Vladimir Herzog. Londres, BBC, 1966.

Herzog se tornou assim a primeira vítima famosa de morte dos órgãos encarregados do combate à guerrilha dos grupos armados de extrema esquerda sem ter nenhuma ligação com tais grupos. Até então, a tortura em alta escala praticada pelo regime atingia esses combatentes. Herzog foi acusado de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que era contra a luta armada.

Sua morte pode ter resultado da sanha anticomunista dos agentes do Estado que atuavam no DOI-Codi de São Paulo, mas é mais provável que tenha sido usada pela linha dura como argumento contra o movimento da ala branda que promovia a abertura ampla e gradual no governo Geisel. O então governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins, era o alvo preferencial dos duros, que tentaram aproveitar-se do fato de ele ter nomeado o empresário e intelectual liberal José Mindlin secretário da Cultura e este, por sua vez, ter levado Herzog, e com ele um “ninho de comunistas”, para uma emissora de televisão pública (para os militares, sinônimo de oficial).

A declaração explícita de guerra da linha dura ao núcleo brando do regime revoltou a consciência cívica nacional, que então ficou sabendo que a violência do Estado não prendia, torturava e matava apenas os revolucionários que queriam tomar o poder pelas armas para instalar uma ditadura de esquerda. Para que isso ocorresse foi fundamental a ação conjunta de três homens: o rabino Henri Sobel, que se recusou a sepultar Herzog entre suicidas no cemitério judeu; o arcebispo dom Paulo Evaristo, cardeal Arns, que desafiou o regime convocando uma celebração ecumênica que lotou a Sé; e Audálio Dantas. O presidente do Sindicato dos Jornalistas teve o tirocínio e a coragem de levar a opinião pública brasileira de forma firme, mas serena, à consciência de que a luta contra a ditadura era de todos e não tinha acabado com o triunfo do Estado contra a extrema esquerda dizimada. Foi o começo do fim do arbítrio dividido.

Em janeiro de 1976, o metalúrgico Manuel Fiel Filho, militante católico de esquerda, foi morto no mesmo DOI-Codi em que Herzog foi pendurado pelo cinto, o comandante do 2.º Exército foi exonerado com desonra e o colega de ofício da vítima Luiz Inácio Lula da Silva liderou greves no ABC. E o regime começou a ruir, sufocado pelo cinto de Herzog no pescoço, após ter feito a foice e o martelo sucumbirem a rajadas de metralhadora.

Audálio Dantas foi um dos artífices dessa derrocada.

Jornalista, escritor e editorialista do Jornal da Tarde.

(Publicado na Pág. S3 do Sabático do Estado de S. Paulo de sábado 4 de agosto de 2012)

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José Nêumanne Pinto

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