José Nêumanne
Capitão ganhou eleição demonizando PT, política e corrupção, mas sempre viveu à custa do erário, é acusado de desvio de verbas e conta com esquerda para ocultar denúncias em comum
Pouquíssimos presidenciáveis em 2018 podiam orgulhar-se de não figurar nas extensas listas de delações premiadas de empreiteiras corrupteiras. Dentre estes foi eleito o candidato do insignificante PSL, sem tempo na propaganda dita gratuita no rádio e na televisão e, por causa de um atentado com arma branca num comício, ausente dos debates nos meios de comunicação. Dois anos depois, como previa o velho Karl Marx, que a direita detesta, tudo o que parecia sólido começou a desmanchar-se no ar.
O capitão da reserva Jair Bolsonaro conquistou o primeiro lugar no pódio eleitoral mercê de uma competente semeadura de conceitos difusos, disseminados em corporações pouco conhecidas dos políticos tradicionais: as Polícias Militares, berço das milícias, e servidores do Judiciário e da Segurança Pública, sequiosos de fazer justiça com as próprias mãos. Quem se diz liberal na discussão do tamanho do Estado deixou-se conduzir docilmente ao abismo pela lábia espertalhona de Paulo Guedes. Os indignados com o maior escândalo de corrupção da História achavam-se representados pela presença do ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro na Esplanada dos Ministérios. Mas o vencedor do pleito ora se concentra na destilaria do ódio nas redes sociais e na pauta conservadora dos costumes, que até hoje obstrui a percepção do atraso da adoção de negacionismo da ciência, terraplanismo, criacionismo e completo obscurantismo reacionário.
Mais de um ano antes da pregação contra o distanciamento social e o uso da máscara para reduzir a velocidade da propagação da pandemia, a ocultação da realidade começou a cair graças ao furo do Estado sobre transações financeiras atípicas no gabinete do então deputado estadual do Rio Flávio Bolsonaro, primogênito do eleito e promovido ao Senado.
Nos últimos 21 meses, as máscaras do antipetismo e da promessa de extinção da corrupção têm sido trituradas por investigação do Ministério Público do Estado onde a famiglia Bolsonaro exerce a política profissional como único meio de vida, e sem pudor nenhum. O pater familias, Jair Messias, depende exclusivamente dos pagadores de impostos para sustentar suas três famílias. Com o soldo de capitão, com o qual foi reformado, ganhou o pão cotidiano para sustentar três mulheres e cinco filhos. À aposentadoria de militar – tido como “mau” (apud Ernesto Geisel) e incapaz (impedido de cursar a escola de preparação de oficiais por Leônidas Pires Gonçalves) – acrescentou os vencimentos de parlamentar por 30 anos. E quando findarem os mandatos que obteve e obtiver pelas urnas, acrescerá a esses ganhos a imodesta aposentadoria de presidente da República.
Desde dezembro de 2018, a Operação Furna da Onça desvenda que pelo menos três membros da família, o presidente Jair, o senador Flávio e o vereador Carlos, empregaram em seus gabinetes funcionários-fantasmas, no delito comum do peculato (desvio de verbas públicas para proveito privado), corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Recentemente a Folha de S.Paulo revelou a prática disseminada no gabinete do próprio chefão familiar na Câmara dos Deputados, flagrada antes na quebra do sigilo fiscal de Nathália, filha de Fabrício Queiroz. Este, conforme noticiário recente, está para assumir toda a responsabilidade pelo crime, isentando o colega na brigada de paraquedistas do Exército e seus filhotes.
Em outubro de 2018, os Bolsonaros pai e filho mais velho protagonizaram o episódio de premonição mais espetacular da má gestão pública brasileira. Demitiram Fabrício e Nathalia e evitaram que os investigadores da “rachadinha” (nome carinhoso da esbórnia) expusessem a falsa ficha limpa de seus patrões. Um antigo aliado, Paulo Marinho, suplente do senador, contou a Mônica Bergamo, da Folha, e depois em depoimentos à Polícia Federal (PF), que um agente devoto do clã havia “vazado” a operação e o adiamento da revelação dela. Repetiu uma velha tradição do Estado de todos os envolvidos: o “bicho do delegado”.
Para desmontar o combate à corrupção o presidente teve tempo para desgastar, humilhar e fritar o avalista do anseio popular, Sergio Moro. Antes de fazer o mesmo com o ex-“posto Ipiranga”, agora merecedor do epíteto “imposto Ipiranga”. Paulo Guedes, transformou-o no bobão da corte de um conservadorismo empenhado em manter, e não em reformar, as bases cada vez mais sólidas dos privilégios de casta, servindo ao Centrão, em cujas hostes malufistas o próprio capitão cloroquina militou.
Por conta e risco próprios, contando com bolsonaristas por convicção ou interesse, como os petistas Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), e Augusto Aras, dono das denúncias contra o chefe do Executivo na Procuradoria-Geral da República, Jair cozinha a pleno fogo a reeleição. E conta para tanto, mais uma vez com o antipetismo, ao facilitar a vida do patriarca da esquerda Lula da Silva, seja passando o pano na ficha sujíssima deste, seja pregando as tábuas do poste na forca a ser imolado.
Como não há viabilidade no universo sabujo e imundo da política tradicional, tudo o que o bolsolulismo dessa sórdida aliança da direita terrorista com a esquerda gatuna deve temer até outubro de 2022 é a sombra do ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública Sergio Moro. Até agora o conta-gotas ácido do Intercept Brasil, a serviço de comunistas corruptos, foi incapaz de destruí-la. E o êxito imprevisível de investidas do gabinete do ódio depende de aliados que ele indicará para entrarem no STF.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog do Nêumanne na segunda-feira 21 de setembro de 2020)
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