Artigo no Estadão desta quarta-feira: Não é negacionismo, é só picaretagem

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José Nêumanne

Governo negocia com pés de chinelo antes de comprar

vacinas de laboratórios confiáveis

Em 22 de junho, Júlia Affonso relatou no Estadão o negócio suspeitíssimo de R$ 1,6 bilhão na compra da vacina indiana Covaxin, enquanto ficavam sem resposta propostas sem intermediário algum de empresas com compliance. Jair Bolsonaro atribuiu a demora à falta de autorização pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de uso dos imunizantes vendidos por Pfizer, Johnson e Moderna. E à exigência dele de assumirem despesas de tratamento médico de eventuais efeitos colaterais na imunização. Na série Nêumanne Entrevista no Blog do Nêumanne, no portal do Estadão, o ex-encarregado de negócios no exterior do Banco do Brasil por 31 anos Luiz Geraldo Dolino disse que é ingênuo atribuir isso a negacionismo, terraplanismo ou obscurantismo da direita estúpida, que apoia incondicionalmente o presidente.

Conforme os fatos, listados no que ele batizou de “cronologia macabra”, a “ideologia” é cortina de fumaça para negociatas escusas no Ministério da Saúde (MS) por burocratas indicados para cargos de confiança pela gentalha política do Centrão. Em conluio com militares, que ocupam cargos de comando na pasta. Segundo Brenno Pires, que revelou neste jornal o escândalo do “tratoraço” ou “bolsolão”, documento oficial do MS confirma que “o valor da dose era US$ 10 por unidade, de acordo com reunião realizada em 20 de novembro entre representantes do governo e das empresas. Porém o preço fechado no contrato foi de US$ 15, um porcentual 50% maior. O valor global do contrato, de R$ 1,614 bilhão (já convertida a moeda), saiu R$ 534 milhões mais caro do que o preço original”. O próprio Brenno Pires e Lorenna Rodrigues informaram que o orçamento secreto destinou R$ 2,1 bilhões para fundos municipais de saúde.

Na sexta 25, o deputado federal Luís Miranda e seu irmão Luís Ricardo de Miranda revelaram à comissão parlamentar de inquérito (CPI) do Senado para apurar crimes e omissões da União no combate à pandemia que narraram a Bolsonaro a pressão sobre o segundo para liberar R$ 225 milhões para pagar pela Covaxin comprada. O adiantamento não era previsto em contrato e a vacina fabricada pela Barhat Biotech fora autorizada pela Anvisa, mas com muitas restrições. Ao receber os irmãos em casa, o que não negou, Bolsonaro prometeu tomar providências. Mas nada fez.

Ao contrário, fiel ao estilo “Mateus, primeiro os meus”, o chefe do desgoverno operante mandou seu anspeçada Onyx Lorenzoni, secretário-geral da Presidência, denunciar os denunciantes à Polícia Federal, à Controladoria-Geral da União, à  Advocacia-Geral da União e ao Ministério Público Federal por “denunciação caluniosa”. E pela “falsificação” do “invoice”. Mas a tal fatura é autêntica e consta do acervo disponível no sistema do próprio MS. Ninguém pediu desculpas pela infâmia. Ao contrário, com base em informações da Precisa, de Francisco Emerson Maximiano, o papel foi “corrigido”. Sempre disposto a trocar velha vergonha por outra mais recente, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, apresentou na CPI a terceira versão: Bolsonaro teria pedido informações ao então ministro Eduardo Pazuello no domingo 21 de março. Este teria mobilizado o secretário executivo, Elcio Franco, exonerado em seguida e, depois, abrigado no valhacouto do Planalto. Na segunda 22, este teria dito que nada havia. Na terça 23, Pazzuello caiu. Um primor de presteza: investigação administrativa feita por um dos acusados e arquivada em 24 horas. Digna de figurar no Guiness Book of Records.

Na sexta 2 de julho, a CPI foi criticada por ter ouvido o cabo PM de Minas Luiz Paulo Dominguetti, que acusara o diretor de Logística (!) do MS, Roberto Ferreira Dias, de ter cobrado propina de US$ 1 (R$ 5,07) por cada uma de 400 milhões de doses de Astrazenica `(sic). A AstraZeneca é parceira na vacina envasada pela Fiocruz. Chamado de “cavalo de Troia” pelos senadores da CPI, ele teve o celular apreendido e nele apareceu que cobrava US$ 0,25 (R$ 1,25) de comissão. Octávio Guedes, da GloboNews,  reduziu-o a pangaré. Mas seu depoimento é peça importante no quebra-cabeças de atravessadores, propinas e comissões que emporcalham o combate federal à pandemia por um armada Brancaleone com cabo PM da ativa, coronéis do Exército, burocratas, chefões partidários e um pastor capelão. O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, segundo os interlocutores de 20 de março, foi dado como autor do “rolo”, o que não foi desmentido, e recorreu ao Supremo Tribunal Federal exigindo depor na CPI. Não se sabe se escolherá o relator ou se exigirá o direito de se calar, dado por Roberto Barroso ao milionário Carlos Wizard, flagrado rindo dos 524 mil mortos pela covid.

Na guerra dos picaretas pés de chinelo que a direita estúpida forneceu ao desgoverno Bolsonaro, só morrem inocentes. Os criminosos contam com o aval dos chefões da politicagem. O presidente da Câmara, Arthur Lira, debocha. O do Senado, Rodrigo Pacheco, fala em banalização do impeachment do nosso Napoleão de hospício. No mínimo, são cúmplices do genocídio doloso.

*Jornalista, poeta e escritor

(Publicado na Pág. A2 do Estado de S. Paulo na quarta-feira 7 de julho de 2021)

Para ler no Portal do Estadão clique aqui.

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