Derrota de Trump propicia o retorno às
origens do governo para todos, não para alguns
Na terça-feira 3, o candidato da oposição democrata, o ex-vice-presidente Joe Biden, foi escolhido pelo longevo sistema da representação federativa dos Estados coloniais da Inglaterra para suceder ao republicano Donald Trump. Só quatro dias depois a maior potência política e militar do Ocidente comunicou o fato ao mundo. E o derrotado não recuou de sua postura de denunciar o “roubo” dos vencedores, sem narrar um fato que fosse para apoiar seu “jus sperniandi’, expressão jocosa do juridiquês para o direito de espernear.
Nos quatro anos em que deu expediente no Salão Oval da Casa Branca, o presidente fez o que pôde para impor as ideias de uma direita truculenta e inculta que mantém vivas velhas crendices de obscurantismo, negacionismo, terraplanismo, criacionismo, armamentismo, ignorantismo e anti-imunização. O governo do povo, pelo povo e para o povo, que inspirou os pais fundadores na Revolução Americana, no século 18, e desde então em voga em muitos países – entre os quais o nosso, com interrupções no Estado Novo e sob o golpe militar de 1964 –, depende da Justiça.
Desde sábado, 7 de novembro, ao informar que a apuração lhe dava acesso ao poder na segunda economia do mundo, o vice de Barack Obama esclareceu que a batalha que acabava de vencer tinha o condão de ressuscitar um princípio dos ancestrais. Biden ressaltou o fato de que, embora tenha sido escolhido por mais da metade dos representantes dos Estados da única Federação merecedora dessa definição no mundo, governará para todos os cidadãos norte-americanos. Aí estão incluídos os mais de 70 milhões que sufragaram o atual presidente. Aparentemente esse é um princípio indiscutível, mas não é bem assim. O bilionário eleito em 2016 exerceu o poder em benefício de seus prosélitos, que apressadamente têm seu ideário definido como “ideologia”. Produto político da reação à entrada em cena da nova potência governada pelo Partido Comunista Chinês numa mixagem de capitalismo selvagem com escravidão social e política, o empreendedor imobiliário de sucesso na vida privada armazenou num quarto de despejo bandeiras tradicionais da política ianque, tais como o multilateralismo, o combate à degradação natural e a generosa entrada de estrangeiros no mercado de trabalho mais ambicionado do mundo.
Dos países ao sul do Rio Grande, o que mais tem oscilado na relação com a potência do norte é o nosso. Exemplo mais óbvio disso foi dado por Getúlio Vargas no Estado Novo, quando flertou explicitamente com o nazi-fascismo, mas, ao fim e ao cabo, entrou na guerra mundial contra Hitler e Mussolini. E ainda cedeu aos aliados uma posição geográfica invejável no extremo nordeste de sua conformação continental, onde os norte-americanos instalaram uma base aérea em troca da Companhia Siderúrgica Nacional.
A volta da ditadura após a democracia liberal de 1946, com o golpe de 1964, resultou na sentença mais sabuja da relação de mendicância estabelecida: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, disse Juracy Magalhães, embaixador do Brasil em Washington no primeiro governo militar. Só que, antes de cair a ditadura, o chanceler Azeredo da Silveira, sob o presidente Ernesto Geisel, chefiou uma diplomacia de não alinhamento ainda em plena guerra fria, em reação às objeções ianques ao acordo nuclear com a Alemanha para a construção de uma usina em Angra.
Nunca antes na História das duas nações a relação entre a maior potência e o nosso país, aonde o futuro nunca chega, houve, contudo, subserviência similar à estabelecida entre o Brasil de Bolsonaro e os Estados Unidos de Trump. O laço forte entre os dois é precisamente a comunhão do fanfarrão do norte com o charlatão dos nossos tristes trópicos. Eleito dois anos depois do ídolo, Jair Bolsonaro abandonou provisoriamente seu ideário de baixíssimo clero na Câmara dos Deputados – corporativista, patrimonialista e de simpatia por gestores estatizantes, como o venezuelano Hugo Chávez e o patrício Lula da Silva – por uma narrativa oposta. Na eleição surfou nas ondas do combate à corrupção da Operação Lava Jato de Sergio Moro, por ele nomeado ministro da Justiça, e da privatização, representada pelo ainda ministro da Economia, Paulo Guedes.
No entanto, a derrota de Trump acaba de surpreender seu discípulo latino, tendo doado o governo para o qual foi eleito legitimamente a suspeitos, acusados e condenados por corrupção de um grupo sem princípios e com interesses chamado inadequadamente de Centrão. Tendo defenestrado Moro da Esplanada, renunciou explicitamente à obrigação constitucional de governar para todos para atender a trumpistas olavistas, agora nocauteados pelo malogro do canastrão do pescoço rubro. E, principalmente, para livrar os filhos políticos de velhos hábitos em geral e, em especial, o senador sonso Flávio, seu primogênito, dos rigores da lei. Conforme disse na reunião de 22 de abril, quando admitiu que não permitiria que a polícia os alcançasse. É a famiglia acima de tudo que o afasta do presidente eleito dos Estados Unidos, que reconhece o primado de todos sobre alguns.
*Jornalista, poeta e escritor
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