A volta de Lula à sua praia: o palanque

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O presidente não precisava fazer comício para aprovar o PAC

 

O cientista político Leôncio Martins Rodrigues, da USP e da Unicamp, especializou-se, primeiro, no movimento sindical brasileiro e, depois, na formação de nossos partidos políticos. Poucos especialistas têm o cabedal de conhecimentos de que ele dispõe a respeito, não apenas na teoria, mas também na prática: freqüentou o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC quando ele ainda era apenas de São Bernardo e Diadema e a intimidade do mais notório de seus presidentes, Luiz Inácio da Silva, quando este era Lula, o Metalúrgico. É ainda um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT) e, embora viesse a se afastar da militância partidária, nunca deixou de acompanhar seus movimentos sísmicos, por dever acadêmico: acaba de lançar mais um livro sobre a origem social dos deputados federais brasileiros. Recentemente, esse especialista detonou uma bomba de efeito retardado ao dar entrevista ao repórter deste Estado Gabriel Manzano Filho, na qual atribui, com todas as letras, ao êxito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) o condão de servir de cavalo-de-batalha para o presidente da República se lançar à sexta disputa pelo cargo máximo que ocupa, após ter sido derrotado três e vencido duas vezes. Será mesmo?
Arriscado é imaginar o que passa pela cabeça de um homem, em especial quando se trata de decisão tão complexa e com tantas implicações, sobre a qual dificilmente ele se sentirá à vontade para comentar até com a mulher, os filhos e assessores mais próximos. Principalmente pelo fato de ela exigir a ruptura com uma opinião que ele nunca escondeu: Lula e o PT sempre se opuseram à reeleição e contra ela lutaram de maneira denodada, antes de seu adversário Fernando Henrique obter a anuência do Congresso para disputá-la, em 1998. A respeito podem ser feitas duas observações. A primeira é de que a negação à recondução de mandatários ao poder era um hábito tão arraigado na cultura política nacional que nem os militares ousaram desafiá-lo, promovendo um rodízio na chefia do Executivo e criando, para isso, um complicadíssimo método de consulta ao Almanaque do Exército. Mas bastou Fernando Henrique achar que o mandato de quatro anos era curto para executar o que pensava fazer na chefia do governo para o Congresso adotar no Brasil o sistema americano da reeleição única e ele disputar e ganhar o segundo pleito consecutivo. Lula e o PT espernearam muito na ocasião, mas perderam a emenda e a eleição de 1998. E quando chegou sua vez de se submeter ao recall (o que é, na realidade, a reeleição entre nós), Lula usou as próprias convicções e as de seu partido contra a prática mais como manobra para fingir que estava em dúvida do que como reiteração de um dogma de fé.
A segunda observação é que, comparadas com as de Fernando Henrique há oito anos, as chances de Lula convencer os parlamentares a lhe darem a oportunidade de disputar o posto pela terceira vez consecutiva hoje são bem mais factíveis. Primeiramente, o tabu do mandato único caiu. Em segundo lugar, nem seu antecessor tucano nem outro presidente na conturbada História de nossa República jamais receberam o apoio que o atual presidente tem no Congresso para conseguir uma emenda autorizando nova recondução ao cargo. E o Supremo Tribunal Federal (STF), caso o assunto (controvertido, é claro) lhe seja submetido, também não se destaca pela independência exagerada em relação à chefia do Executivo. Não lhe será difícil concretizar, pois, o que o professor Leôncio diz que ele almeja: quatro anos de bonança econômica para reivindicar mais um mandato.
Tudo isso, contudo, poderia não passar de um exercício vazio e inócuo de futurologia política se não houvesse o próprio presidente arregaçado as mangas e saído a campo para fazer aquilo que mais gosta de fazer e também mais sabe praticar: desde que subiu no palanque de Vila Euclides para conduzir greves, há 35 anos, nunca mais se soube que ele tenha descido de algum. E agora, para não fugir ao costume de encontrar a primeira oportunidade para fugir do gabinete e correr para qualquer palanque que lhe montem, seja onde for, ele já começou sua peregrinação de convencimento da população sobre os bons ventos que soprarão em seus lares se o tal do PAC der certo.
A aprovação do PAC não depende do povo, mas dos congressistas. Portanto, a insistência de Lula nesses comícios e o uso franco por ele de uma retórica populista e eleiçoeira para falar de seu programa não deixam dúvida nenhuma de que este será seu maior instrumento para fazer o sucessor. Pode ser outrem – algum petista, como a chefe da Casa Civil, Dilma Roussef; aliado, como o deputado Ciro Gomes (PSB) ou o governador Sérgio Cabral (PMDB); até oposicionista, como o mineiro Aécio Neves (PSDB). Mas quem se sente capaz de jurar que não seria ele próprio? A cruzada pela redenção do País pelo PAC contém ingredientes retóricos que esses eventuais tubos de ensaio eleitorais não estão habituados a empregar, pelo menos com a competência que o presidente vem mostrando ter. Ao garantir, em palanque, que o “PAC troca o consenso de Washington pelo do sertão”, é mais provável que ele não se refira a qualquer dos citados ou outros aqui esquecidos, mas sim a uma personagem que o marqueteiro Duda Mendonça criou e ele tem interpretado de forma eficiente: a do pobre retirante excluído e marginalizado pela zelite empedernida.
Como o escorpião da fábula, que ferroa o sapo mesmo sabendo que morrerá na travessia do rio, por não saber nadar, Lula tem plena noção de que o palanque é sua praia. E dificilmente ou seus cúpidos aliados ou seus tíbios adversários lhe imporão suficientes obstáculos que matem esse seu sonho dourado antes que ele chegue são e salvo a suas tépidas areias.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 07 de fevereiro de 2007, Opinião, página A2

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José Nêumanne Pinto

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