Parlamentares e juízes desmoralizam a democracia representativa
O episódio da tentativa dos congressistas de concederem um aumento abusivo e extorsivo de 90,7% para seus vencimentos é de enorme relevância e traz lições fundamentais para a construção da democracia que queremos ter para o Brasil. Mas, infelizmente, nada indica que tais lições possam vir a ser devidamente incorporadas ou sequer compreendidas.
A disputa entre os três Poderes da República pelo troféu do que mais se dedica a atender ao apetite da própria grei e desprezar os interesses do cidadão-contribuinte que os sustenta revela um índice praticamente intolerável de descolamento entre Estado e Nação. O grau em que essa competição vem sendo travada tanto inverte o sentido da palavra democracia (o governo do povo), quanto contraria frontal e brutalmente a natureza representativa daquela que se diz viger neste país. Da forma como funcionam nossas instituições políticas, os Poderes são autônomos não apenas entre si, mas também em relação à base de que, em teoria, mas apenas em teoria, retiram a legitimidade que é e só lhes pode ser dada pela delegação da vontade da maioria. Ao lutar por aumentos abusivos para juízes e procuradores, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ellen Gracie, certamente não se comporta como uma julgadora suprema das demandas entre cidadãos ou entre estes e o Estado, mas, sim, como dirigente sindical da corporação a que pertence. A naturalidade com que ela e seus colegas, ministros da Corte julgadora suprema, agem em defesa de sua corporação não atenua, mas agrava esse sintoma de nossa doença institucional, retirando-lhe autoridade para o exercício de sua função capital para o funcionamento da República. E aqui mais uma vez se perde o sentido da palavra, que vem do latim e significa a coisa do povo. Não a causa dos juízes e procuradores, mas daqueles que são partes nos processos em que estes atuam, seja como porta-vozes do Estado, seja como julgadores.
No vácuo da ligeireza com que o Judiciário assegura os próprios privilégios vêm aqueles que menos poderiam fazê-lo, pois, em teoria, e mais uma vez apenas em teoria, são os “representantes” diretos da vontade popular. No entanto, estes se comportam como sócios remidos de um clube privado cujos regulamentos se baseiam no princípio do “estatuto da gafieira”: “quem está fora não entra, quem está dentro não sai”.
Sua tentativa de elevar o próprio teto salarial até o patamar alcançado pelos dignitários do Judiciário é mais que uma agressão aos trabalhadores de baixa renda, entre os quais os barnabés do serviço público, cujos reajustes salariais a que têm direito mal acompanham a degradação do valor da moeda pela inflação, sendo que, no caso destes últimos, nem reajustados são. É mais que um acinte ao contribuinte escorchado por uma carga escandalosa de impostos para sustentar a farra dos corruptos e estróinas no dispêndio desregrado dos recursos públicos. É, sobretudo, uma violência contra a democracia de que dizem ser agentes. Pois, ao legislar em causa própria em assunto de interesse pecuniário, os parlamentares dão razão a quem pense que não funciona neste país uma democracia (governo do povo) representativa (por delegação popular) de verdade, mas uma ditadura de uma elite política civil cúpida, imoral e insensível que não tem nenhum espírito cívico nem capacidade alguma de enxergar o mal que faz à própria idéia de que é viável erigir um regime baseado na soberania da escolha e da vontade do povo para a gestão dos interesses coletivos num país pobre como este.
“Nunca antes” a opinião pública se havia manifestado de forma tão indignada como neste caso e é natural que Suas Excelências tenham sido obrigados a recuar. Mas esse recuo, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não deve ser comemorado como um avanço na direção de um regime político moderno e transparente. Mas, sim, como mais uma manobra espúria e maquiavélica para manutenção do status quo. Na festiva comemoração do recuo, a sociedade civil comporta-se como se tivesse vencido uma batalha, pois, afinal, a tendência natural das coisas é que a próxima legislatura seja melhor e, sobretudo, mais comprometida com os interesses comuns do que esta que se fina, a pior de todos os tempos. As Mesas da Câmara e do Senado, contudo, sabem, por experiência própria, ser mais provável que a próxima legislatura seja ainda pior. Não porque Maluf e Clodovil serão deputados com delegação de expressivo número de eleitores, mas, sim, porque prevalece a Lei de Murphy (e não o princípio de Peter, como equivocadamente este autor citou no último artigo nesta página), segundo a qual o que tende a piorar só tem de piorar.
Tudo isso é devastador. Mas mais desolador ainda é observar o jogo que tem sido feito pelo grupo que se mantém no topo do Poder Executivo por vontade de ampla maioria da população votante nacional. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus lugares-tenentes assistem com indisfarçável júbilo a esse processo suicida de desmoralização dos outros dois Poderes, para poderem contar com a cumplicidade dos juízes egoístas e o apoio dos parlamentares egocêntricos, tornando possível que eles próprios façam da máquina pública gato e sapato, aproveitando-se até para pisotear os pés de quem quiser mudar o rumo das coisas e amordaçar as vozes que insistam em dissentir. Nesta republiqueta do João sem braço, prevalecem os princípios de “manda quem pode, obedece quem não é da corte” e “quem pode menos nunca ri”. A democracia que resulta disso, menos que um arremedo, é um monstro sem cabeça que devora o próprio futuro sem deixar saída.
© O Estado de S. Paulo, página A2, quarta-feira, 27 de dezembro de 2006.