Na Revolução de 1930, dizia-se antigamente, a Paraíba entrou com o cadáver (de João Pessoa), Minas Gerais com as tropas e o Rio Grande do Sul ficou com o poder (Getúlio Vargas). Nesta peça teatral A Manha do Barão, o cadáver é gaúcho, mas não se trata de uma retaliação ou de uma vendetta tribal e, sim, da reencarnação da alma de Aparício Torelly, ou simplesmente Apporelly, o combativo humorista sulino que atazanou os espíritos autoritários no começo do século 20. É desta reencarnação de Apporelly que trata o texto teatral de Ipojuca Pontes, o não menos combativo jornalista, dramaturgo e cineasta paraibano, que vive há muito tempo no Rio de Janeiro. Para esta reencarnação ser adequada, e é, era preciso que corpo e cavalo de macumba tivessem algumas características comuns e afinidades notórias. E têm: Apporelly e Ipojuca se assemelham mais do que faria supor apenas levar em conta seus nomes fora do comum. Ambos desenvolveram, ao longo de sua vida, um instinto natural para auscultar a alma humana no que ela tem de mais sórdido e mais sublime. Esse instinto os leva a rejeitar o ridículo, tido por muitos como inevitável e por alguns até como lugar comum. Autor e tema recusam pratos feitos e gostam de entrar na cozinha para saber como são preparadas as refeições a serem servidas ao grande público: nesta metáfora culinária, o comunista Apporelly, que se comprazia em denunciar a estúpida nudez real, e o liberal Ipojuca, que adora rasgar desbotadas fantasias ideológicas, são comparáveis com agentes da vigilância sanitária que descobrem e combatem ratos fugidos do porão e escondidos entre panelas, abrigados no calorzinho da pasmaceira generalizada e da inércia dos fracos, que os fortes incentivam e financiam. No Brasil de Vargas, o Barão de Itararé, pseudônimo adotado como uma lembrança permanente das glórias falsas de uma batalha fictícia, era a consciência crítica do “puxassaquismo” oportunista, o rebenque em riste, pronto a expulsar os vendilhões da frente dos sepulcros caiados, territórios dos coros do “amém, sim, senhor”, expressão favorita do Brasil governado pelos donos dos cavalos amarrados no obelisco. No País de Lulinha da Silva, a pátria do “nunca antes”, onde o sono dos nababos, assegurado pelo financiamento público à privada financeira, não é perturbado pelo ronco da barriga dos pobres, que têm garantido proteína à mesa e um picadeiro mambembe de muito mico e pouco siso, Ipojuca brada no deserto. Sitiado pelos beneficiários da farra generalizada, que não se cansa de fustigar, queimado pelo sol tropicalista e apontado como se fosse o capeta para os que babam na barba divina de Marx e embebem de lágrimas o dólmã de seu profeta Fidel, o autor deste monólogo feliz faz bem em ressuscitar a manha e os aforismos do antecessor, reconstituindo para o leitor/espectador meio século da atribulada bagunça nacional. E o faz bem porque recupera a graça, a irreverência e o humor corrosivo do Barão num texto leve, fluído e de facílima assimilação, todo tecido nas tiradas do inimigo da “ditabranda” de Getúlio Vargas. À luz das mazelas atuais, em que o peixe da imoralidade pública é vendido na feira livre da falsa ética, Ipojuca convoca o fantasma do Barão para ele deixar claro que a chanchada de ontem é a mesma de hoje, só mudando os canastrões que, em vez do “amém, sim, senhor”, se louvam no “tá tudo dominado, companheiro”.
É ler e conferir.
A mesma chanchada, com outros canastrões
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