Investigação que viola lei fingindo socorrê-la faz à democracia
mal idêntico à impunidade
Duas decisões da Justiça poderão deter a marcha da autonomia policial, que ameaça nosso Estado Democrático de Direito. As provas de irregularidades cometidas pela Polícia Federal (PF) na investigação da Operação Satiagraha foram remetidas ao Supremo Tribunal Federal (STF) antes que elas fossem destruídas, como demandou o Ministério Público Federal (MPF). E o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou provas também obtidas ilicitamente pela PF na Operação Castelo de Areia.
Em abril de 2005, este jornal previu esse risco no editorial Reality show da PF. Ao comentar a Operação Chacal, o texto citou entrevista do deputado federal Paulo Delgado (PT-MG), que constatou: “A PF interroga, indicia e atormenta (…) com um viés penal, favorecendo um dos lados”. E denunciou os espetáculos de prisões espalhafatosas nos quais policiais agiam como astros em cena. O delegado Protógenes Queiroz elegeu-se deputado federal – à custa de sobejos de votos do palhaço Tiririca – mercê do destaque obtido no comando da Satiagraha, que sucedeu à Chacal. Nestes seis anos, a lógica da polícia de espetáculo tem obedecido a normas da discriminação ideológica ou partidária e do interesse negocial. A PF nunca produziu um relatório que permitisse ao MPF processar Waldomiro Diniz, flagrado, filmado e gravado achacando um empresário da jogatina, apesar de o réu ter confessado o crime. E o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nunca cumpriu suas promessas públicas de encarregar a autoridade policial a ele subordinada de investigar a execução de seus correligionários Toninho do PT e Celso Daniel, coordenador de seu programa de governo na campanha vitoriosa de 2002.
Mas investigou com diligência alegados indícios apontados em “provas” forjadas por sócios estrangeiros da Brasil Telecom e por um vídeo produzido ilegalmente por uma equipe da Globo num restaurante, embora os policiais tenham falsamente assumido a autoria da gravação. Levou os donos da Casa & Vídeo, rede de lojas populares do Rio, a venderem a empresa por um quarto do preço avaliado pelo comprador antes de suas contas terem sido bloqueadas, seus diretores presos e 2 mil funcionários demitidos sob a acusação, insinuada pela revista Exame, de “descaminho” (venda de bens contrabandeados), da qual seria inocentado pelo STJ. Ainda com base em delação de concorrente, a autoridade policial devassou a contabilidade da cervejaria Schincariol e interceptou telefonemas de seus dirigentes buscando flagrar sonegação de impostos. A extinção parcial do processo pelo STJ, em 2006, foi saudada pelo autor do habeas corpus, Fernando Fernandes, como a primeira vitória da cidadania sobre tentativas feitas por agentes da lei de praticarem “lavagem de provas ilícitas”.
O precedente dos processos contra a Casa & Video e a Schincariol, repetido nas acusações contra a empreiteira Camargo Corrêa na Operação Castelo de Areia, chama a atenção para a violação da lei por agentes do Estado encarregados de fazê-la ser cumprida e de reprimir quem a viole. O recurso à denúncia anônima ou ao “vazamento” de informações sigilosas para algum jornalista amigo publicar o boato e este servir de pretexto para o inquérito policial (o comissário José Dirceu era mestre em usar nisso os préstimos dos procuradores Luiz Francisco de Souza, vulgo Torquemada, e Guilherme Schelb) é danoso ao Estado de Direito. A substituição da justiça pelo justiçamento (linchamento de acusados selecionados à revelia do processo jurídico formal) pode vir a ser tão lesiva aos direitos da cidadania quanto a impunidade.
Impedir que se usem provas ilícitas para processar seja quem for é um passo importante, mas não é suficiente. Será necessário ir a fundo na investigação dos interesses políticos e privados que “produzem” os espetáculos de justiçamento estrelados pela autoridade policial, mormente nos últimos oito anos. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, prestará inestimável serviço à democracia se esclarecer questões levantadas no noticiário sobre os inquéritos da PF, que nunca tiveram resposta. Há esclarecimentos que não podem ser incineradas junto com as provas de irregularidades cometidas por policiais, como a participação ilegal de 76 subempreitados da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) na Satiagraha e a coincidência de imóveis declarados pelo encarregado dessa operação, Protógenes Queiroz, terem sido doados por José Zelman, policial aposentado sem patrimônio compatível com o valor deles. Será este senhor uma espécie de doador-geral da República? Seria o caso de Protógenes apresentar um projeto instituindo o “Zelman para todos”, que distribuiria apartamentos no Guarujá como programa social do governo? A quem interessava “grampear” os telefones do então presidente do STF Gilmar Mendes, do filho do ex-presidente Lula e da presidente Dilma Rousseff, na passagem dela pelo primeiro escalão do governo anterior? Por que a PF não apura isso, embora a revista Veja tenha publicado o teor dos diálogos?
Respostas a tais dúvidas poderão evitar que novas vítimas de operações espalhafatosas e agressivas sofram altos custos morais e graves prejuízos financeiros. E isso é o de menos, pois o cidadão comum, à mercê do Sistema Guardião, que neste instante pode estar “grampeando” tanto meu telefone quanto o do leitor, é a maior vítima deste estado de coisas. Convirá investigar, esclarecer, processar e punir na forma da lei responsáveis, financiadores e financiados desses espetáculos de justiçamento e degradação. Patrono da causa vencedora no STJ e conhecedor dos exageros da polícia, que ele até há pouco chamava de “republicana”, o criminalista Márcio Thomaz Bastos passou para o lado da lei e dele se espera que venha a contribuir para que seus ex-subordinados se restrinjam a sua função institucional. Polícia Federal S. A. nunca mais!