Os assassinos dos três rapazes continuam soltos e comandam o tráfico na favela
A tragédia do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, poderia figurar como ilustração atualizada no clássico da historiografia A Marcha da Insensatez, de Barbara W. Tuchman, que relata como, desde Tróia até o Vietnã, alguns governos perseguem objetivos contrários aos próprios interesses.
Incapazes de enfrentar o problema da violência, anabolizada pelo crime organizado, que vende entorpecentes e contrabandeia armas, e de combater o mal endêmico da corrupção policial, governadores fluminenses sempre apelaram à União por uma intervenção militar nos territórios sem lei das favelas do Rio. Da mesma forma como não resistiu à tentação de mandar tropas cumprir a tarefa de Sísifo de impor a lei no Haiti, o governo federal, chefiado pelo petista Lula da Silva, cometeu a insensatez de atender ao pedido, contrariando a maioria dos oficiais das Forças Armadas e a unanimidade dos especialistas em segurança pública. Com a mesma fé que devota à própria infalibilidade e à capacidade de transferi-la à “companheirada” antiga ou moderna, o papa Lula Único se investiu da convicção inabalável de que a farda do Exército seria impermeável aos esgotos morais que infestam a periferia carioca. Mas não ficou nisso e foi além: em nome do “social”, que tudo justifica, ele ungiu projeto do senador Marcelo Crivella, maioral da Igreja Universal do Reino de Deus, senador da República e um dos candidatos oficiais à Prefeitura da ex-Cidade Maravilhosa, permitindo que o Ministério das Cidades o bancasse e o da Defesa o protegesse. Seria injusto atribuir à permissão intenções sub-reptícias de desmoralizar uma instituição com a tradição do Exército Nacional, como vingança por causa dos sobrevôos de helicópteros nas assembléias de metalúrgicos grevistas sob o comando de Lula, então líder sindical, ou dos processos em que ele foi réu na Justiça Militar na ditadura. O que determinou a decisão foram intenções mais rápidas e rasteiras: o interesse eleiçoeiro e a garantia da futura falta de cobrança.
Dado o primeiro passo para a insensatez, os seguintes se tornaram inexoráveis: quem joga uma maçã no esgoto não pode esperar que ela seja retirada limpa e pronta para ser comida. A crônica dos três rapazes abordados pela patrulha encarregada de proteger a obra do candidato Crivella e entregues aos chefões do tráfico do morro rival foi mais anunciada que espetáculo de Paixão de Cristo em circo mambembe na Semana Santa. Contribuiu para o desfecho trágico a circunstância particular da infelicidade das vítimas de cruzarem com um tenente inconseqüente, assim como poderiam ter sido raptadas pelas hostes rivais ou atingidas por balas perdidas, tão comuns no cotidiano deles como a miséria com que conviviam. O Estado é responsável por haver abandonado o território das favelas dos Morros da Providência e da Mineira e entregado, na prática, as miseráveis comunidades que nelas moram à tirania sangrenta de delinqüentes que fazem o serviço sujo para o baronato do crime organizado.
A transformação de tropas do Exército em escolta para dar segurança a um projeto de promoção política de um candidato aliado foi o movimento seguinte na marcha da insensatez. Nesta ofensiva, o desatino do oficial e a cegueira obediente de seus subordinados foram meros aditivos à insensatez sistêmica do Estado incapaz, ineficaz e brutal e de seus gestores, que vendem a alma ao diabo pela permanência no poder em troca do absoluto abandono dos escrúpulos. Não se trata de inculpar apenas o Executivo. Os legisladores, mesmo os adversários de Crivella, nada fazem para garantir a igualdade de oportunidades nas normas que presidem as disputas eleitorais porque eles próprios esperam um dia poderem delas se locupletar. A Justiça Eleitoral, seduzida pela possibilidade de exercer poderes censórios em plena democracia, multando quem entrevista candidatos, nada fez para impedir o abusivo uso da máquina pública para favorecer o candidato oficial e, depois da tragédia, embargou a obra, decisão tardia e questionável (e o PAC, hein?). Pois é mais fácil multar empresas de comunicação que enquadrar o poder maior, impedindo que o favorecimento de seus sequazes nele perpetuem seus atuais ocupantes.
A culpa maior é de quem deu a ordem de partida para a marcha da insensatez. Mas convém lembrar que os subordinados também foram cúmplices. O comandante da Força nunca se disse contrariado por vê-la usada para proteger interesses subordinados. Nenhum oficial sob suas ordens imitou o capitão Sérgio Macaco, que, na ditadura, denunciou a loucura de seu comandante, que planejou explodir o gasômetro no Rio para, depois, inculpar os guerrilheiros de esquerda na guerra suja. Nenhum prócer de um partido da oposição denunciou a infâmia de uma obra financiada pelo Erário com fins eleiçoeiros, a pretexto do “social”, que tudo justifica e tudo permite. Nenhum desses promotores fanáticos por fama exigiu o fim dela.
A 11 dias da tragédia, o mandante das torturas e das mortes e seus executantes estão livres e comandam o tráfico na favela. A polícia fluminense, tão diligente em acusar os militares que entregaram as vítimas aos algozes, não prendeu nem processou o chefão do tráfico e seus esbirros. O ministro da Defesa subiu o morro para pedir desculpas, expediente grato ao atual governo e ao qual também apelaram os protagonistas militares, com idêntico oportunismo. O ministro da Justiça não perdeu a ocasião de bajular o chefe, dizendo que Lula se opunha a usar o Exército no combate ao tráfico. E este agiu como se fosse um ombudsman ao classificar de “injustificável” a presença das tropas sob seu comando no morro, além de ter prometido indenizar as famílias das vítimas, como se o vil metal bastasse para limpar a sujeira e a sangria desta tragédia impune eanunciadíssima.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 25 de junho de 2008, p. A2