Na produção do dia, a tentativa b0lsonarista de ressuscitar a censura da ditadura
Artigo no blog do meu site, quarta 16
As duas faces da covardia bolsonarista
José Nêumanne
O grotesco episódio da tentativa da volta à censura no caso da comédia de Danilo Gentili no desgoverno Bolsonaro revela que a valentia da extrema direita só se aplica contra os mais fracos
A mentira tem pernas curtas, diziam nossos avós. Hoje em dia, na era dos foguetes espaciais, não faz mais sentido enfatizar que a bazófia anda a cavalo, pois eqüinos e muares deixaram de ter relevância entre os meios de transporte. O lamentável episódio em torno da comédia Como ser o pior aluno da classe, de Danilo Gentili, com a participação de Fábio Porchat, tem o condão de revelar que mentirosos exercem sem parcimônia a covardia e fazem muita questão de exibir e, depois, negar a estupidez.
A celeuma girou em torno da cena da obra em questão, na qual um vilão tenta convencer duas crianças a o masturbarem. Ao tomar conhecimento da existência dela, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, amigo do peito do presidente Bolsonaro e da famiglia dele, determinou que subordinados tomassem providências a respeito. Distribuída pela netflix, a fita despertou a ira generalizada da militância direitista. “Na cabeça de um esquerdopata, progredir é aceitar a pedofilia. Para tanto, eles vão tentando botar isso na sua cabeça suavemente, sem que você perceba”, escreveu o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que quase virou embaixador no Brasil em Washington mercê de suas prendas como piloto de chapas de hambúrguer nos EUA. “Repugnante, asqueroso”, definiu Mário Frias, canastrão de programas juvenis na televisão e guindado à secretaria da Incultura nessa confederação de primatas.
O livro de Gentili foi lançado em 2009, com indicação para maiores de 18 anos. O longa metragem estreou em 2017, quando recebeu classificação indicativa para espectadores acima de 14 anos. A indicação etária foi definida por uma comissão do próprio Ministério da Justiça, à época, sustentando que a produção tinha “contexto cômico e caricato”, o que serviu de atenuante para a definição de 14 anos como idade mínima. De fato, considerar apologia à pedofilia um contexto de ficção em que o assédio flagrado é praticado por um fora da lei implicaria proibir qualquer clássico do faroeste atribuindo apologia ao assassínio a crimes seriais de malfeitores, sem considerar a ação oposta de mocinhos. Só cérebros desprovidos de massa cinzenta poderiam usar tal pretexto para censurar um filme por menor que seja a qualidade estética do entrecho do produto.
Segundo despacho da Secretaria Nacional do Consumidor, publicado em 15 de março no Diário Oficial da União, caso a disponibilização, exibição e oferta” do filme não fossem interrompidas em até cinco dias, deveria ser aplicada multa diária de R$ 50 mil. De acordo com essa decisão, assinada pela diretora do Departamento de Proteção e de Defesa do Consumidor, Lilian Brandão, a medida foi tomada “tendo em vista a necessária proteção à criança e ao adolescente consumerista”.
Depois da polêmica, a comédia, como não poderia deixar de ser, entrou na lista dos mais vistos na Netflix, na quarta posição. O cineasta conservador Josias Teófilo chamou a decisão do governo de “imbecil” no Twitter, explicando, de forma irônica, que “o filme é tão bom que em cinco anos todos que assistiram sequer se lembram que o assistiram”.
Pelo menos um entusiasta fã, contudo, tomou providência para não deixar provas de seus elogios à comédia, quando a viu, em 2017. O pastor e deputado federal Marco Feliciano (PL-SP), por exemplo, apagou o rasgado elogio de antanho. “Comunico que apaguei o tuíte de 2017 onde elogiei o filme do Danilo Gentili. Confesso que não me recordo da cena que faz apologia à pedofilia, devo ter saído para atender telefone. Se tivesse visto, faria o que sempre fiz com outros filmes, teria denunciado. Ainda dá tempo, tomando providências”, registrou agora o delator confesso.
Unânime foi a reação dos juristas ouvidos sobre a óbvia arbitrariedade censória da medida, citando o inciso nove do artigo quinto da Constituição, que veda totalmente qualquer tipo de proibição, o mais execrado dos ditos “entulhos tolitários” da ditadura militar. Que o atual chefe do desgoverno federal, capitão das malícias Jair Bolsonaro, exalta, embora mantenha nas proximidades do próprio escritório o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, que participou de uma tentativa fracassada de golpe contra o penúltimo presidente militar, Ernesto Geisel.
A censura é uma típica forma cruel de covardia, o que não exime seus praticantes de manifestações pusilânimes de recuo, como demonstra esse lamentável episódio. Diante da reação da sociedade civil de reprovação à manifestação, nitidamente ditatorial, a autoridade que exerceu seu arbítrio abriu mão da atitude retardatária tomada antes. Os mesmos burocratas que bajulam os chefes de forma, esta sim “repugnante e asquerosa”, voltaram atrás no arbítrio e aumentaram a interdição etária aos menores de 14 para 18 anos.
Assim, fica formalmente esclarecido que a covardia bolsonarista pode ser lerda para bajular o autocrata de plantão, pois passou 804 dias de indigestão para perceber os perigos de apologia à pedofilia e agir. A decisão inconstitucional, como disseram todos os especialistas, foi tomada a três anos, dois meses e meio da subida da a rampa do poder pela direita tonta. Mas é ágil para tentar escapar pela porta dos fundos quando flagrada em estupidez ululante: um dia depois, a tola proibição foi jogada no mesmo cesto de lixo em que Feliciano despejou suas gargalhadas de aprovação.
• Jornalista, poeta e escritor